Quem votar NÃO no referendo vai estar a votar no
Status Quo actual: pode praticar-se o aborto livremente, desde que seja clandestino. O que incomoda quem anda a fazer campanha pelo NÃO não é a prática do aborto, apenas a sua legalização. O que os move não é a defesa da vida que dizem sagrada, querem apenas que o aborto não tenha uma legitimação legal, política e social. Pode fazer-se o aborto à vontade desde que não se veja, é essa a realidade do país há décadas (ou será séculos) e parece não incomodar os apoiantes do NÃO. É essa a realidade que vai manter-se se não ganhar o SIM.
Não devemos subestimar uma questão cultural que joga aqui um papel importante; a contradição que existe entre o que são os princípios morais e o que é a
praxis. Há princípios que podem não ser respeitados desde que não se assuma, e se continue - claro! - a carregar o estigma da culpa. Não que isso seja exclusivo da cultura portuguesa (longe disso), mas encaixa-se muito bem. Dei-me conta disto quando discutia há pouco com alguém que hesitava entre votar SIM e votar NÃO. Pesava a favor do SIM o não querer que as mulheres vão presas, a favor do NÃO o manancial do costume (mas sem grande convicção), e diz-me a certa altura "De qualquer modo não há nenhuma mulher presa por praticar o aborto". Há pelo menos um dos movimentos pelo NÃO que
usa este argumento (aliás, tem sido recorrente como
refere o Rui Tavares na crónica do último sábado). Pergunto eu: Como é que se pode usar como argumento a favor da manutenção da lei actual o seu incumprimento? Contradição? Incoerência? Esquizofrenia? Ou todas? Os apoiantes do NÃO nada fizeram para que a lei actual seja efectivamente cumprida. Nada fizeram contra os praticam o aborto clandestino. A lei actual nada resolveu até agora, nem há-de resolver, mas mobilizam-se para mantê-la, o que só pode ter como consequência deixar as coisas como elas estão. Não aceito e não uso o argumento de que o aborto deve ser legalizado pelo simples facto de que ele existe e não pode ser erradicado, mas o que se exige é coerência daqueles que se dizem contra o aborto. Se acham que lei actual é boa então façam alguma coisa coisa para que seja cumprida, denunciem à polícia as mulheres que praticam o aborto, mandem-nas para a cadeia, façam manifestações a favor da condenação dessas mulheres quando elas vão a julgamento, façam pressão política para que a lei seja cumprida, façam petições, façam qualquer coisa. É isso que fazem os apoiantes do NÃO? Nada disso, há até quem vote NÃO já tendo praticado o aborto. Histórias como aquelas narradas
neste post da Fernanda Câncio no Glória Fácil também conheço. Certa vez, antes do referendo de 1998 discutia (acaloradamente) com colegas sobre o assunto, até que uma delas confessou já ter feito um. Como sempre a situação dela era especial (como se as outras não fossem), que era culpa da médica, e mais não-sei-quê, e que votava NÃO. Acho que histórias destas não faltam para aí. Claro que estas pessoas acham legítimo que se pratique o aborto, o que não acham legítimo é que seja legalizado, que seja socialmente aceite, que deixe de ser feito às escondidas, que deixe de ser estigmatizado, que deixe de ser crime.
Eu pessoalmente não gosto de contradições, especialmente nas leis, especialmente quando tem as consequências que tem esta contradição. Se a lei não é para se aplicar, então é porque não é boa, mude-se a lei. Se é aceitável a pratica do aborto então que seja feita em condições de higiene e segurança. Se há circunstâncias especiais em que se justifica a interrupção da gravidez, então que a mulher (ou o casal) tenha o direito de tomar essa decisão, e que isso deixe de ser um crime.
Adenda: Monsenhor Luciano Guerra, reitor do santuário de Fátima, explica melhor do que eu o que quero dizer. Vejam
aqui ou
aqui