segunda-feira, novembro 20, 2006

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De regresso ao Inverno

Cá estou de volta ao Inverno depois de ter passado uma semana na Primavera. De encontro às expectativas estava uma temperatura máxima para lá dos 20º, e só choveu um dia em oito, sol o resto do tempo (o paradoxo é que na Primavera está frio é dentro de casa, ao contrário das temperaturas estivais interiores aqui no Inverno, é que lá não se usa aquecimento, vá-se lá saber porquê). A Primavera do Sul tem essa grande vantagem, e por mais que a disciplina protestante do Inverno seja civilizada nunca terá, o Sol, quanto ao mais a Primavera é um local pitoresco. Por inacreditável que possa parecer o que conto a seguir é absolutamente verídico.
Por exemplo, vi na Televisão local uma entrevista de um inverosímil personagem que se afirmava vítima de uma cabala que envolvia o actual presidente, o anterior presidente, um ex-líder do seu próprio partido, umas quantas figuras políticas e mediáticas, e aproximadamente 70% da população local. Numa democracia isso não será considerado propriamente uma conspiração, mas o excêntrico personagem escreveu mesmo um livro sobre o assunto. O mais extravagante é que esse inarrável personagem terá mesmo chegado a ser primeiro-ministro, aliás extravagante mesmo é que ele considera ainda a possibilidade de voltar a sê-lo, consegue vender o seu livro, e é notícia de telejornal. Entretanto, continuando a ver os noticiários, há um líder de um partido residual de direita que defende a criminalização da interrupção voluntária da gravidez como política de incentivo à natalidade. Desligo a televisão, e saio à rua.
O moral das primaveris gentes estava primaveril, como convém. Há uns poucos anitos quando lá fui numa das minhas visitas pairava um clima de euforia estival pelo ar, um par de anos mais tarde voltei a passar e a depressão invernal passou a estado de espírito nacional, agora está assim para o médio, nem quente nem frio, equilibrado. As conversas de café à volta dos temas de sempre não são nem megalómanas nem catastrofistas, antes parece haver cada vez mais um certo realismo, sem nunca perder o sentido crítico. Parece até que se chegou a um consenso generalizado que a Primavera precisa de reformas profundas em quase todos os sectores, tal como há também um consenso que os outros sectores são aqueles que mais precisam de reformas. Dizem-me, por exemplo, que os professores não querem que se mexa no seu estatuto, mas que seguramente os mesmos concordarão que os médicos, os militares, os funcionários públicos beneficiam de demasiados privilégios e que os profissionais liberais deveriam pagar mais impostos. Seguramente todas as outras classes profissionais concordariam na generalidade com os professores, alterando apenas um ou outro pormenor (provavelmente substituiriam a sua própria classe profissional por professores e estariam totalmente de acordo com a necessidade de reformas acima enunciada).
Fiz ainda umas curtas viagens na Primavera, que as auto-estradas, baluarte da modernidade local, são mesmo convidativas. Foram construídas há uma década, mais ou menos, e projectava-se que iriam trazer o progresso a todo o resto da nação. Não foi bem o caso, o país para lá das auto-estradas continua assim para o atrasadito. O primeiro-ministro de então, não-obstante, foi promovido por voto popular a presidente da república da Primavera. Nas estradas notava-se ainda (e sempre) o estilo de condução estouvado dos autóctones, mas dizem a estatísticas - uma boa notícia - que o número de vítimas tem vindo a diminuir (lá está, uma demonstração empírica da teoria de Darwin).
Tive ainda tempo de ir, assim de passagem, ao séc. XIX visitar alguns familiares que ainda por lá tenho. Logo para assegurar uma transição progressiva, a auto-estrada que vai para o séc. XIX é moderna, sim, mas não aceita cartões VISA, o que para quem vem o estrangeiro é uma grande chatice. Pelo caminho a auto-estrada ia sendo ladeada por altivos eucaliptos - espécie vegetal exótica muito popular na Primavera, apesar de nociva. No séc. XIX as coisas estão como antes, umas charruas e carros de bois, fontes, fornos de pão e tudo o mais, apenas com um pouco mais de pó e teias de aranha do que antes, prestes a dissipar-se a qualquer instante. Ou talvez esteja apenas a dissipar-se lentamente. Encontrei no caminho um tasco que tinha lá a um canto duas fabulosas mesas de tampos em azulejo e respectivos bancos de correr. Aí degustei umas deliciosas sandes de carne estufada e bifanas (refeição para dois com bebida e sobremesa, a menos de 7 euros). Tal como encontrei num passeio ao novo Mont St. Michel lá do burgo (local apropriado para uma fotozinha do turista), mesmo em frente à estação dos comboios um outro magnífico café, um dos autênticos, um estoico resistente, que é especial simplesmente porque não tem nada de especial (e novamente frango para dois, refeição completa igualmente em conta). É afinal nos pequenos pormenores bem escondidos que se encontra o Sol da Primavera.

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