quinta-feira, janeiro 25, 2007

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Quem faz investigação, quem a paga e quem beneficia?

Quem faz a investigação científica são em grande maioria instituições públicas, ou instituições privadas sem fins lucrativos. Ou seja, a investigação é numa enorme maioria paga por dinheiros públicos, ou seja de contribuintes, e por doações de beneméritos. Há excepções, como algumas áreas ligadas às tecnologias, mas seguramente não nas ciências biomédicas. A investigação que leva à descoberta de novos fármacos para combater qualquer doença é feita em laboratórios públicos, universidades, ou institutos de investigação fundamental, nunca nos laboratórios das empresas farmacêuticas. Se, por exemplo, se fizer uma pesquisa bibliográfica sobre os últimos desenvolvimentos no combate à SIDA pode verificar-se isso mesmo, se for o Cancro dá no mesmo, e por aí a fora. No entanto são as empresas farmacêuticas quem detém as patentes dos medicamentos que comercializam, e graças a isso podem estabelecer monopólios de determinados produtos. Para obterem as patentes as farmacêuticas têm duas possibilidades, podem pura e simplesmente comprar essas patentes aos investigadores que desenvolveram a pesquisa (o que me parece eticamente duvidoso, embora seja legal), ou então fazer ligeiras alterações aos produtos já existentes e patentear esse produto modificado (o que não passa de um estratagema). Acontece que essas modificações não alteram o efeito terapêutico, não trazem nada de clinicamente novo, mas podem tornar a produção mais fácil e mais barata.

A questão que a me parece importante - a mim e a muita gente - é saber se é legítimo uma empresa farmacêutica deter a patente, e logo o monopólio, de um produto que pode salvar vidas e é conseguido graças ao dinheiro de contribuintes (e beneméritos).

Vem isto a propósito de um processo em tribunal lançado pela Novartis, um gigante suíço da indústria farmacêutica, algo como a terceira maior do mundo, contra o estado indiano. A Índia tem uma lei de patentes que permite a produção de genéricos em larga escala, a preços reduzidos sem ter que sujeitar-se a autorizações das empresas farmacêuticas. Repare-se que a lei indiana nem sequer impede as patentes de medicamentos, simplesmente considera que alterações triviais de fármacos já existentes não merece uma nova patente. Para dar um exemplo concreto, uma alteração trivial é o aspegic em relação à aspirina, em vez de ácido acetil-salicílico tem-se acetil-salicilato de sódio, o que dá no mesmo. Se o produto original já tiver uma patente é essa patente que vale (o que até pode proteger as farmacêuticas em certos casos), se o produto original não tiver patente então as modificações também não são patenteadas e são de uso livre. A Novartis alega que esta lei é contrária às regras da Organização Mundial do Comércio (mas OMC), mas a OMC tem excepções às regras de propriedade intelectual específicas para os produtos farmacêuticos.

Se a Novartis ganhar o processo as consequências podem ser, serão seguramente, enormes, e quem vai ser prejudicado são aqueles que beneficiam hoje dos medicamentos a baixo custo produzidos na Índia. E a Índia está a tornar-se numa espécie de farmácia para o "terceiro mundo" (o que quer que isso seja), os medicamentos a baixo custo produzidos na Índia servem a muita gente, por exemplo 80% dos anti-retrovirais que a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) usa nos seus programas de combate à SIDA vêm da Índia. Este processo judicial não é único, já em 2001 várias farmacêuticas, entre as quais a Novartis, moveram em conjunto um processo idêntico que acabaram por abandonar devido à intensidade dos protestos a nível internacional. Actualmente as outras farmacêuticas estão na expectativa, a ver para que lado cai, se a Novartis ganhar, outras moverão processos idênticos, Tal como fizeram em 2001, os MSF lançaram agora uma petição online contra este processo, e ao que parece a recolha das assinaturas segue a bom ritmo (a minha incluída), e lançaram outras iniciativas para fazer pressão sobre a Novartis.

Para quem quiser ler mais sobre o assunto, embora não esteja nas primeiras páginas dos jornais (o que tenho alguma dificuldade em perceber) há vários artigos disponíveis: Uma notícia na Nature (link só para assinantes, mas está aqui em PDF), uma no Le Monde, na Reuters em inglês e em português, e no site da ONG Oxfam.

Arquivado em:Ciência

2 Comments:

Blogger JSA Escreveu...

Olha que nem sempre o financiamente funciona da forma que referes. Muitas vezes as empresas financiam a investigação nos laboratórios e universidades públicas, pelo que o dinheiro para aquela investigação específica vem dos privados, logo é lógico que sejam esses a ficar com a patente. Mas também é verdade que esses casos, ainda que em crescimento, são ainda algo residuais, pelo que tens alguma razão. Por outro lado, há o caso dos financiamentos públicos de projectos de investigação em instituições públicas onde empresas privadas estão envolvidas. Em alguns desses casos, vemos que as patentes desenvolvidas são concedidas às empresas e que os dinheiros públicos são usados no processo, mas que as empresas privadas têm de devolver o dinheiro (ou os direitos de patente) num determinado período de tempo.

O que não sabia é que teriam permitido que medicamentos usando exactamente o mesmo ião dessem origem a patentes. Na minha área é frequente dizerem que por já se ter falado no assunto no passado já não há hipótese para patentes. Nunca pensei que mudar a forma de distribuição do ácido para o sal permitisse criar nova patente.

De resto está claro que as empresas farmacêuticas só se interessam pelo lucro. Basta ver uma apresentação de uma dessas empresas num congresso para se perceber isso. Não fazem mais que se queixar da quantidade de testes que têm de fazer para poderem comercializar o produto, como quem diz "se nos deixassem meter isto no mercado sem saber se estamos a matar gente é que era bom". Mas disso não se fala, infelizmente. Há demasiado dinheiro envolvido no spin.

12:18 da tarde, janeiro 25, 2007  
Blogger Zèd Escreveu...

Talvez não tenha ficado bem explícito no post, mas refiro-me espicicamente às empresas farmacêuticas, e à investigação nas ciências biomédicas. Noutras áreas há de facto mais participação de privados na investigação. Mas as farmacêuticas o que fazem é apenas os ensaios clínicos, que como dizes bem é a contragosto, e eventualmente as tais modificações triviais.
Também é verdade que quando as farmacêuticas compram as patentes, o dineiro dessa compra vai para a investigação, mas isso não me parece legítimo. Diga-se que se o fazem é porque é autorizado, cumprem o seu papel, aí e compete aos governos regular essa situação, tomar medidas para que nenhuma empresa possa ter monopólio de um produto resultante da investigação com fundos públicos.
Pelo que sei, e é essencialmente através das notícias recentes, que refiro no post, apenas na Índia essas alterações trivias não são sujeitas a patentes. Mudar de ácido para sal, que é o exemplo do aspegic, permite contornar a patente, no caso é a Bayer que detém a patente da aspirina (se não me engano), mas não do aspegic que é um genérico (e é acetil-salicilato de lisina e não de sódio como referi por engano).

11:47 da tarde, janeiro 25, 2007  

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