Como seria de esperar a guerra está ainda bem presente no Congo, alguns diriam mesmo que o país ainda está em guerra. Durante a minha estadia foram assinados acordos entre a R.D.C. e os países vizinhos que permitem o regresso dos refugiados, o que é pelo menos um bom sinal. Apesar de ainda haver escaramuças na região da fronteira com o Ruanda, o ambiente é já de pós-guerra. E mesmo que a frente de guerra nunca tenha chegado ao Katanga, as histórias foram muitas. Na realidade remontam ainda ao tempo do Mobutu, à repressão quotidiana em que o regime se baseava. Qualquer pretexto servia para os militares exercerem violência, por exemplo não ter a factura do supermercado quando se passeava com um saco de compras na rua era suficiente para ser interpelado, e não estamos a falar de fazer umas perguntinhas civilizadamente. Outra história dessa altura, ainda mais violenta, é a do massacre na Universidade de Lubumbashi, que se deu de 11 para 12 de Maio de 1990. A Guarda presidencial cercou os dormitórios da Universidade, cortou a luz no campus e, com a ajuda de agentes infiltrados, foram de quarto em quarto à procura de alunos activistas da oposição. Para requinte estableceram um protocolo de acção para diferenciar apoiantes de opositores: era feita uma pergunta, e quem soubesse a contra-senha era poupado, os outros assassinados a golpes de arma branca. Os colaboradores do regime, e particularmente os membros da tribo de Mobutu, sabiam a contra-senha (com uma rápida pesquisa com o google e encontrei dois relatos desta história;
aqui e
aqui, e deve haver outros). Ainda assim há quem reconheça em Mobutu habilidade política, aliás fiquei com a sensação que esta opinião é unânime, e habilidade política porque conseguiu manter-se no poder e porque conseguiu unir o país.
Depois de Mobutu veio Laurent Kabila, e aí a verdadeira guerra. Embora de início tenha sido um passeio, Kabila avançou sobre Kinshasa sem que o exército de Mobutu se conseguisse sequer organizar para se defender. A imagem que dá quem viu é a dos soldados de Mobutu a fugirem em pânico cada um para seu lado. O mais que houve em Lubumbashi foi a tomada do aeroporto onde os paraquedistas ainda resistiram umas duas horas. Os soldados chegavam comprar roupas à civil a transeuntes, para não serem identificados.
De Kabila ficou-me a imagem de um líder idolatrado por ter salvo o país de Mobutu, um líder sem dúvida populista que tinha uma extrema facilidade de contacto com a população (hoje o seu retrato está em toda a parte, também para lembrar que o seu filho é candidato às eleições). Cometeu o pecado de querer um Congo isolado do resto do mundo, e pelos vistos o resto do mundo não lhe perdoou.
Depois de Kabila tomar o poder veio a guerra civil. A versão que me contaram por lá foi a de que o exército do Ruanda que inicialmente apoiava Kabila quis tirar dividendos, e de apoiantes passaram a opositores. Aliás passaram a apoiar os opositores de Kabila. O mesmo se passou com o Uganda e o Burundi, cada um apoiando um exército diferente, mas que nunca se agrediam. Dessa altura há os relatos de recrutamentos "voluntários" indescriminados, de formação para a guerra de poucas semanas em zonas remotas e sem contacto com o mundo extrior, do pagamento aos soldados à entrada do avião para a frente de batalha (só os que sobrevivessem poderiam usufruir do dinheiro, que nem tempo para enviar o dinheiro às famílias lhes era dado), de pilhagens e da fome, de chegar ao extremo de ter dinheiro para comprar comida e não a haver comida à venda. Não tem muito a ver com o que vi. Como me disse o J. "on est venu de loin", o país onde estive já não é o mesmo onde há cinco anos ainda havia uma guerra civil.
Agora há o governo de transição, chefiado pelo Joseph Kabila (o tal filho de Laurent Kabila) que parece não ter o carisma do pai mas conseguiu o equilíbrio entre todas as facções em guerra, e que estão agora representadas precisamente nesse governo de transição. Com Kabila filho o Congo não está isolado do resto do mundo, bem pelo contrário, e o resto do mundo agradece. O governo de transição dura só até às eleições, que ao que parece vão ser bastante democráticas, dia 30 de Abril. O recenseamento e referendo para a constituição já la vão e correram bem, a nova constituição entra em vigor este fim-de-semana.
A impressão que me ficou é que já ninguém quer ouvir falar de guerra, perceberam que quando não há guerra a economia melhora espectacularmente. Disseram-me até que se alguém quiser voltar a pegar nas armas, nem apoio popular para recrutar soldados teria. Por duas vezes as eleições foram adiada e das duas vezes se temeu que houvesse de novo violência, mas não houve. Agora não há sequer a hipótese de voltar a adiar as eleições. E parece que a vitória de Kabila é uma inevitabilidade.