quarta-feira, outubro 18, 2006

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Princípios e Incertezas: A Resposta (parte III)

Aqui está mais um post do Santiago, na continuação deste nosso debate. Este conclui, por assim dizer, o que começou nos dois posts anteriores (este e este), mas o debate continua (pelo menos na parte que me toca vai haver mais um post, mas não me parece que fique por aí). Já agora uma nota: este post do Santiago foi escrito antes do meu anterior ser publicado.

É importante definir bem "Ciência" para poder solucionar o "problema da demarcação". O objectivo é ter uma definição suficientemente abrangente para incluir todos os ramos do conhecimento científico, deixando de fora tudo o que é não-ciência e/ou é pseudo-ciência.

Não chega o "teste da falsificabilidade" para demarcar os territórios. Não deve ser preciso voltar a falar de hamburgueres para explicar que há muita coisa falsificável (a parapsicologia de que falo mais abaixo é outro exemplo) que não é ciência. Popper ainda errou mais ao sugerir que a ciência progride por falsificação das "teorias" (ou hipóteses) em vigor (ainda Wolpert: "This view completely ignores the nature of discovery in science and fails to explain how one knows that a falsification is correct."). Como tentei mostrar ao contar a história da descoberta do mecanismo de diversificação dos anticorpos, o progresso científico às vezes não tem nada a ver com a "falsificação" de hipóteses.

Creio que Popper falhou porque tinha poucos conhecimentos de biologia. Dar como exemplo a hipótese "todos os cisnes são brancos" é manifestamente infeliz embora revelador dessa séria limitação nos seus conhecimentos. Um grande número de mutações no genoma do cisne provocam alterações na côr das penas (e algumas até ausência delas). Essas alterações podem ou não fixar-se na população, mas nenhum estudioso da "matéria viva" teria falado assim ou dado esse exemplo. Quando Popper publicou a sua ""Logik der Forschung" já se sabia biologia bastante para perceber que o exemplo é absurdo. Só alguém com um deficiente conhecimento dos mecanismos subjacentes à evolução das espécies (e que não percebesse as implicações do "descent with modifications") é que apresentaria um exemplo tão mau. Se Popper soubesse um bocadinho mais de Ciência, de Biologia em particular, não teria obrigado tanta gente (igualmente ignorante em Ciências Biológicas) a percorrer o mundo catalogando cisnes...

Os Cientistas Sociais e Humanos gostam de chamar científica a toda a disciplina que 1) Tenha um objecto de estudo bem definido, e 2) Acumule conhecimento seguindo o "método científico". É claro que são suficientemente humanos para definir "Ciência" de uma forma que inclua o que eles próprios estudam, mas a definição escolhida é claramente insatisfatória. No fundo apenas transfere o "problema" para a definição de "método científico", que é coisa bem mais difícil, talvez impossível, de fazer. Creio que a citação de Feyerabend que o Zèd transcreveu aqui argumenta justamente este ponto, e bem. Não existe um "método científico" porque todos os caminhos são bons se nos ajudarem a compreender melhor o mundo que nos rodeia e no qual vivemos.

Há outra razão, mais importante, para rejeitar a definição favorita dos CSH: É uma definição que também não nos resolve o "problema da demarcação": A Parapsicologia tem um objecto de estudo bem definido ("study of communication or interaction between organisms and their environment that do not appear to rely on the established sensorimotor channels", na deliciosa definição do European Journal of Parapsychology), e usa métodos que só podem ser descritos como científicos (enuncia hipóteses e testa-as experimentalmente). E no entanto a parapsicologia não é ciência.

Sempre preferi, portanto, definir ciência como a actividade que procura explicar o mundo natural (os "fenómenos" naturais, que são os únicos que indubitavelmente existem) por "causas naturais" (que são também as únicas que indubitavelmente existem). Esta definição resolve-nos o "problema da demarcação" sem nos obrigar a entrar em grandes filosofias (serôdias na maior parte dos casos) sobre o que é o "método" ou quantas categorias tem o espírito ou qualquer outro tipo de patuás desinteressantes. Sem excluir a existência de "causas sobre-naturais" (ou até de "fenómenos sobre-naturais"), os cientistas devem-se limitar ao que é objectivo (ie: respeitar sempre o "princípio da objectividade" de que falava Monod). Tudo o resto, a parapsicologia, a magia, a teologia, a alma, etc etc etc é tal e qual o que o outro dizia: "C'est magnifique, mais ce n'est pas la guerre"...

O mundo natural (a matéria) é constituída por átomos e por isso, da definição que dei acima, seguem-se duas consequências necessárias (logicamente necessárias, em meu entender): Em primeiro lugar, só merecem a designação de científicas aquelas actividades que se reduzem ao estudo de interacções entre átomos (ou moléculas); e em segundo lugar, quando encontramos a "explicação molecular" para um dado fenómeno encontramos também a "verdade científica" para ele.

Os argumentos seguintes valem sobretudo para as "Ciências Biológicas" (com as quais estou familiarizado), que se organizam em moléculas, células, organismos e populações. Para níveis organizativos "inferiores" (sub-atómicos) ou "superiores" (supra-populacionais) o vocabulário teria que ser revisto, mas não creio que o argumento fosse substancialmente diferente a menos que estivéssemos completamente errados acerca da constituição atómica da matéria.

Os genes são constituídos por ADN, que "codifica" (cifra seria mais correcto...) a sequência de amino-ácidos numa molécula de proteína. Linfócitos diferentes produzem anticorpos diferentes porque a sequência das bases de DNA que constituem os genes dos seus anticorpos é diferente. Quando conseguimos explicar molecularmente o que se passava em cada uma das células B de um indivíduo, aprendemos a " verdade" sobre o mecanismo de geração da diversidade dos anticorpos. Mudar o "paradigma actual" ou falsificar a "hipótese vigente" já não tem nada a ver com anticorpos ou com o Sistema Imunitário: Só pode acontecer se toda a física actual estiver errada. Sabemos hoje tudo o que há para saber sobre o mecanismo de geração de diversidade se o que sabemos hoje em dia sobre a estrutura básica da matéria for correcto. Esta conclusão permite-me repetir a frase que esteve na origem deste belo debate (de que eu tanto gostei): "o mecanismo de geração de diversidade dos anticorpos [...] nunca mais se alterará.

Se a matéria não for constituída por átomos, se os átomos não tiverem tantos electrões e orbitais livres como pensamos, se afinal andamos enganados desde os tempos de Rutherford (que disse: "All science is either physics or stamp collecting", uma das mais profundas e correctas definições de "Ciência" que é possível dar...), então vamos ter de recomeçar tudo desde o princípio. Só nos resta ter esperança de conseguir vir a perceber porque é que os anticorpos são tão diversos no caso de a matéria, no fim de contas, ser constituída de outra forma.

Entretanto sugiro que deixemos os cisnes em paz...


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Nota 1 Quando digo que quero excluir tudo o que é não-ciência e/ou pseudo-ciência, é óbvio que não me importo de incluir a "má-ciência" na minha definição. A "fusão a frio" ou a bizarra história dos "Raios-N" são exemplos de "ciência" que não passou a ser pseudo- só por ter sido má-...

Arquivado em:Ciência