quinta-feira, outubro 05, 2006

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Princípios e Incertezas: A Resposta (parte I)

O Santiago deixou ali em baixo um comentário ao meu post anterior que eu acho que merece passar da caixa de comentários para a página principal. Fica já com a promessa de uma segunda parte em breve. E já agora é uma estreia, o primeiro post convidado aqui no Agreste Avena.

Por alturas dos anos 30 ou 40 Landsteiner (que ganhou um Nobel pelo estudo dos grupos sanguíneos) reparou que os coelhos que ele usava nas suas experiências conseguiam fazer anticorpos específicos para qualquer antigénio. Ele percebeu isso quando imunizou coelhos com antigénios que não existem na natureza: Contendo ligações triplas de Carbono e Oxigénio. Estas são ligações de alta energia, muito instáveis, e só existem como produto de síntese laboratorial.

A especificidade desses anticorpos era altíssima. Tinham elevada afinidade para essas triplas ligações C - O e nenhuma ou quase nenhuma para quaisquer outras estruturas moleculares.

O problema era explicar este fenómeno à luz do paradigma Darwinista vigente: O antigénio em causa (C - tripla ligação - O) não existe na natureza e era inconcebível que o Oryctolagus cuniculus tivesse conservado um gene codificando um anticorpo com uma especificidade que nunca jogou um papel na evolução dessa espécie: Não existe, nem nunca existiu, um único micro-organismo, potencialmente patogénico para o coelho, que tenha esse antigénio para servir de alvo a uma resposta imunitária...

Criou-se então um paradigma instructivo: Os anticorpos não têm uma estrutura fixa, mas "adaptam-se" ao antigénio depois de ele aparecer, tornando-se por isso específicos a posteriori, por assim dizer. A noção era que o antigénio "instrui", "ensina", o anticorpo a ser específico para si próprio. Várias teorias foram propostas para explicar em detalhe a produção de anticorpos a partir da "forma" providenciada pelo antigénio.

Estes modelos no entanto explicavam mal a contínua produção de grandes quantidades de anticorpo mesmo depois de o antigénio ter sido todo eliminado para além de outras observações que se iam acumulando. Por outro lado, quando nos anos 50 a Biologia se tornou verdadeiramentte molecular, estas Teorias Instructivas revelaram-se incompatíveis com outros princípios entretanto consensualmente aceites. Em particular a ideia que "um gene = uma proteína" e o postulado (de Crick) que uma dada sequência de amino-ácidos (numa proteína) determina necessariamente a sua estrutura tridimensional eram incompatíveis com a existência de uma proteína (um anticorpo) poder variar enormemente a sua conformação dependendo do antigénio que encontrava.

Portanto, o princípio que "it's all in the genes" obrigou a aceitar que anticorpos diferentes tinham sequências de amino-ácidos diferentes (isto foi provado experimentalmente com a maior das facilidades assim que tecnologias de sequenciação se tornaram correntes) e a observação do Landsteiner passou a ser interpretada como resultado de reactividade cruzada. Um anticorpo específico para "C - tripla ligação - O" também havia de reagir com outro qualquer antigénio e talvez esse antigénio desconhecido que tenha servido de força selectiva para conservar tão exdrúxula especificidade na espécie.

Sobrou o problema da diversidade propriamente dito... já não a questão de como explicar tantas especificidades tão diferentes (que era do tempo em que se pensava que bastava uma proteína, ou um número reduzido delas, para ter várias especificidades), mas sim a existência de tantos genes tão diferentes, cada um expresso pela sua célula B. Burnett acabou por propôr (e demonstrar) que cada célula B faz um anticorpo particular. Cada uma dessas células expressa um gene diferente dos das outras - o fantasma de Darwin ainda o assombrava certamente porque ele chamou a isto Selecção clonal. Ver a propósito deste assunto também a NOTA 1 no fim deste texto. O paradigma mudou totalmente e Clonal Selection passou a ser o que estava a dar...

Durante os anos 60 e grande parte dos anos 70 duas Teorias antagónicas acumularam dados. Os da Germ-line Theory insistiam que toda a diversidade era genética e hereditária enquanto que os adeptos da Somatic mutation Theory propunham que um número reduzido de genes (codificando os anticorpos) se diversificavam por mutação somática enquanto as células B (ou os precursores) proliferavam, gerando-se assim uma larga colecção de clones de células cada um dos quais composto por células com uma especificidade particular (ie: uma sequência particular de bases codificando uma sequência particular de amino-ácidos na molécula de anticorpo).

Tonegawa veio a mostrar que estavam todos mais ou menos errados: A enorme diversidade (pré-existente à introdução do antigénio) dos anticorpos resulta da combinação aleatória de múltiplos gene fragments que se "juntam" para formar um gene de anticorpo. Nas cadeias pesadas há 3 tipos: V (em número de cerca de 300), D (10) e J (4) ; nas cadeias leves há 2: V (300) e J (4). Tudo isto dá uma diversidade mínima de 10.000.000 de moléculas diferentes ((300 X 10 X 4) x (300 x 4)), que é ainda aumentada num factor superior a 10 por o mecanismo de junção dos gene fragments (V - D - J ou V - J) não ser muito exacto (a junção pode ocorrer em pontos diferentes) e permitir ainda a introdução de sequências aleatórias de nucleotidos (chamadas N sequences) nos pontos de junção).

Em suma: A diversidade não resulta de variação somática nem é completamente codificada no germ-line (as N-sequences são introduzidas aleatóriamente em cada célula B, de cada vez que uma se forma).

A Somatic Mutation Theory obteve o seu dia ao Sol, com a demonstração que, no decurso de uma resposta imunitária (ie: após a introdução de antigénio no sistema) um mecanismo especial (chamado de Hipermutação) altera aleatoriamente a sequência de nucleotidos no gene de um anticorpo específico para esse antigénio e permite a "selecção" de anticorpos mutantes com afinidade mais elevada para esse antigénio. É por tudo isto que uma resposta imunitária, se lhe derem tempo, se torna mais e mais específica para o antigénio que a desencadeia levando à produção de anticorpos com uma afinidade cada vez mais elevada (um fenómeno chamado: Maturação da Resposta Imunitária, que era também difícil de explicar nas Teorias Instrutivas).


Creio que este sumário toca em todos os pontos que quero revisitar no "próximo capítulo", quando tentar analisar a história da evolução destas (Theories of G.O.D.) à luz da minha leitura dos mecanismos propostos por Popper e por Kuhn para explicar o progresso das ideias científicas. Antes que alguém me critique pelos alguns erros e simplificações que estão aí em cima, quero explicar que sei que tive de saltar por cima de alguns detalhes... felizmente neste domínio do conhecimento já todos sabemos tudo e por isso também eu sei as simplificações de que tive de me socorrer...

Outra coisa: O mecanismo descrito é o que ocorre em ratinhos, e também em humanos, com algumas variantes. Tanto quanto sei este mecanismo vale também para outros roedores (ratos e coelhos). Quanto ao que se passa noutras espécies, vou-me guardar para depois, quando falar do problema da côr das penas dos cisnes...


Santiago
_______________________________________

NOTA 1 Vale a pena falar também de Niels Jerne que propôs uma Natural-Selection Theory of Antibody Formation (com hífen e tudo). A obsessão com Darwin era tanta que Jerne acaba a postular um mecanismo que já nessa altura se sabia ser biologicamente absurdo: Ele sugere que os anticorpos se possam replicar ("autocatalytic replication of the specific globulin molecules") depois da sua síntese como proteínas, e após serem "seleccionados" pelo antigénio. Max Delbrück comunicou esse paper para o PNAS e Burnett mais tarde reconheceu que lhe serviu de inspiração para propôr a Teoria da Selecção Clonal surgida 2 anos depois...

Arquivado em:Ciência

10 Comments:

Blogger Zèd Escreveu...

Caro Santiago,

Vejo-me obrigado a jogar à defesa. Vou ter que esperar pelo próximo capítulo para contra-argumentar. Por enquanto não há nada a contestar.

11:36 da tarde, outubro 05, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

OK. Faz-me só um favorzinho:

Põe os itálicos onde eu gosto de os ver (tenho esta obsessão com italizar palavras em estrangeiro...) e desfaz lá aquele parágrafo - consequência de um copy-paste apressado - entre o replica- e o tion...
Obrigado

Santiago

11:54 da tarde, outubro 05, 2006  
Blogger Zèd Escreveu...

Done!

8:07 da manhã, outubro 06, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

'para outros roedores (rato e coelhos)!!! Grande ERRO CRASSO!!!

Caro Santiago, temo muito em dizer-te que um coelho não é um roedor, mas sim um lagomorfo. Que é muito distinto de um roedor!!

E por falar em anticorpos, o que dizem dos nanoanticorpos?
Poimandro

3:47 da manhã, outubro 07, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

É verdade... cometi um erro, e lamento! Por outro lado não sei o que são nanoanticorpos.

Santiago

8:53 da manhã, outubro 07, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

Todos cometemos erros. Eu todos os dias o faço. E, por vezes bem mais graves que o que vosso. Por exemplo, agora fiquei em dúvida se existem mesmo 'Nanoantibodies' ou se serão 'nanobodies'!

Poimandro.

6:52 da tarde, outubro 07, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

Ressalvo 'bem mais graves que o vosso.'

Poimandro

7:06 da tarde, outubro 07, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

AAAhhh! Trata-se dos anticorpos do camelo...

Não têm cadeias leves e são "the biochemist's dream"... facílimos de produzir, purificar, concentrar, dissolver, etc. São uma grande esperança como fármacos por serem tão fáceis de manipular bioquimicamente...

Obrigado pela lembrança. Prometo não me esquecer deles quando falar do que se passa noutras espécies ao explicar o que é que eu penso das cores das penas dos cisnes...

Santiago

8:05 da tarde, outubro 07, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

É verdade, Camelos, afins, e não só... Parece que também dos tubarões!!
Quem sabe um dia, também dos humanos!

Poimandro

8:26 da tarde, outubro 07, 2006  
Anonymous Anónimo Escreveu...

Gostei de seu texto...capacidade de síntese me surpreendeu.

4:10 da tarde, abril 17, 2008  

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