quinta-feira, outubro 19, 2006

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Princípios e Incertezas (parte IV)

Já que estamos a discutir se é possível ou não à Ciência atingir a Verdade, defina-se o que entendemos por isso. Atingir a Verdade para a Ciência seria conseguir uma descrição completa e definitiva de um determinado fenómeno natural. Pela minha parte se uma teoria conseguir explicar coerentemente todos os dados empíricos conhecidos sobre um determinado fenómeno, e conseguir prever de forma concreta e precisa todas as observações futuras, então essa teoria atingiu a Verdade. Mas isso não basta para que possamos afirmar que a Ciência atingiu a Verdade, é preciso que possamos demonstrar no presente que as observações que vão ser feitas no futuro estão previstas correctamente. Já deu para perceber que eu defendo a impossibilidade da Ciência atingir a Verdade, ou melhor, pode até já ter atingido em alguns campos mas não podemos sabê-lo, não podemos ter a certeza. É esta a posição que tenho defendido neste debate. Mas não se tome esta minha atitude por uma qualquer espécie de "nihilismo" científico, não acho que a Ciência possa atingir a Verdade mas acho que pode, e aliás já alcançou, uma aproximação muito boa.

A primeira razão que me ocorre apresentar em defesa da minha posição, é uma, por assim dizer, "razão" visceral. Na minha experiência de investigador estou habituado a trabalhar sempre com uma margem de erro. Em primeiro lugar, para realizarmos as nossas experiências temos sempre que manipular os objectos. Um exemplo que já utilizei é o da Biologia Celular. As células são transparentes, para observá-las temos que utilizar fixadores, soluções tampão, corantes, microscópios fluorescentes e tudo o mais. Estas manipulações alteram as células, e apesar de fazermos os controlos apropriados, cada técnica tem as suas limitações, e o que é mais importante, o erro associado. Em segundo lugar, quando fazemos uma observação temos que fazê-la uma determinado número de vezes para demonstrar que é reprodutível, esse número de vezes tem que ser significativo, supostamente tudo isto é sujeito a tratamento estatístico. Acontece que raríssimas vezes a observação feita, tal como é descrita, corresponde a 100% das observações feitas, há quase sempre aquele 1% de casos que não é como os outros 99%, só para chatear. Mas na verdade não chateia muito, porque é atribuído a um putativo erro experimental, varrido para baixo do tapete, e publicado a observação com um grau de confiança de 99%. O que isto quer dizer é que em cada 100 afirmações que fazemos há muito provavelmente uma que está errada, e vivemos bem com isso. Claro que depois há confirmações independentes, e a observação é coerente com o modelo que por sua vez é coerente com as outras observações feitas, e tudo bate certo. Pelo menos assim nos artigos de revisão, em que tudo nos é apresentado de uma forma muito mais bonita. Na minha opinião a margem de erro não se dilui nas outras observações pelo facto de serem coerentes, nem nas confirmações independentes, porque também essas têm uma margem de erro associado. A margem de erro está sempre lá mais ou menos constante, por isso parece-me que não se possa afirmar que a teoria seja Verdade. É provavelmente verdade, com um grau de confiança de 99%, o que não é a mesma coisa.

Passemos então à questão de Popper, e Santiago tem feito ao longo deste debate uma excelente crítica da epistemologia popperiana, que eu tenho vindo a defender para efeitos de argumentação, mas dou razão ao Santiago numa grande parte. Por exemplo a velha estória da cor dos cisnes, como escreve o Santiago é uma mau exemplo daquilo que pretende ilustrar, ou porque foi mal escolhido como exemplo ou porque não possível ilustrar melhor o argumento que se quer apresentar. Esse exemplo dos cisnes aparece no contexto histórico em que Popper se demarca dos neo-positivistas, Wittgenstein e o círculo de Viena, que afirmavam que uma observação repetida de um fenómeno permitia estabelecer a Verdade desse fenómeno, o raciocínio indutivo. É essa posição que Popper contraria com a sua ideia de falsificabilidade. E a meu ver, é este aspecto essencial que se deve reter da filosofia de Popper: a assimetria que existe entre a demonstração de uma tese e a sua refutação. Um resultado experimental pode liminarmente refutar uma teoria, e a refutação é definitiva. O mesmo resultado não pode demonstrar liminarmente e definitivamente uma teoria, porque se mantém sempre a possibilidade, ainda que teórica de uma outra experiência poder refutar a mesma tese. Este princípio, na minha opinião, permanece válido.

Finalmente um argumento a puxar para a Sociologia da Ciência. Quando perguntei "Como se estabelece um paradigma? Quem decide que uma teoria passa a paradigma?" para depois responder que é a comunidade científica enquanto entidade colectiva quem decide da aceitação de uma paradigma, foi com uma intenção. E aqui estou a adoptar um ponto de vista relativista (e espero desta vez estar a usar melhor esta palavra), é para dizer que a aceitação de um paradigma é não só um fenómeno complexo por envolver todo um grupo de indivíduos, mas sobretudo circunstancial, determinado por todos os factores "ambientais" do momento, é apenas a "verdade" do momento. É difícil imaginar que um paradigma seja definitivo.

Quando Santiago escreve "Mudar o "paradigma actual" ou falsificar a "hipótese vigente" já não tem nada a ver com anticorpos ou com o Sistema Imunitário: Só pode acontecer se toda a física actual estiver errada. Sabemos hoje tudo o que há para saber sobre o mecanismo de geração de diversidade se o que sabemos hoje em dia sobre a estrutura básica da matéria for correcto.", reafirmando a tal frase que começou este debate, aproxima-se perigosamente das Nuvens de Lord Kelvin. Parece-me antes do mais que não é necessário que a Física esteja errada para que o paradigma actual sobre a geração de diversidade dos anticorpos seja substituído, basta que a mudança de paradigma seja por exemplo ao nível da Biologia Molecular. E se tal acontecesse, uma mudança drástica de paradigma na Física ou na Biologia Molecular, não teria nada de catastrófico. Aconteceu à Física newtoniana, e afinal a Física newtoniana continua a ser suficiente para mandar uma nave espacial à Lua e voltar, continua a ser ainda hoje uma aproximação bastante boa.

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Nota 1 - O André Goios critica a minha leitura do princípio da incerteza de Heisenberg. Sem contestar os argumentos do André, o que entendo por verdade não se limita apenas às propriedades intrínsecas, mas a uma descripção completa do fenómeno. No caso do electrão a velocidade e posição fazem parte dessa descrição, além do que a função de onda é apenas uma descrição parcial das propriedades do electrão. Assim sendo, como o princípio da incerteza ainda não foi refutado, o ponto principal do meu argumento continua válido: a observação altera a natureza do objecto, o que torna a Verdade inacessível.

Nota 2 - Entretanto o Santiago já escreveu uma resposta ao meu post anterior. Se calhar nem valia a pena dizê-lo, mas há muitas coisas em que estou de acordo com o Santiago, se ficam pontos aos quais não respondo é provavelmente essa a razão.

Arquivado em:Ciência

2 Comments:

Anonymous Anónimo Escreveu...

Boa!

Vais ter troco, claro. Tem graça que, compreendendo o teu raciocínio e, em larga medida não discordando dele, continua a repugnar-me a conclusão: "não acho que a Ciência possa atingir a Verdade"... se calhar é algo de tão visceral em mim como em ti... dá a ideia que existem Mistérios misteriosos a juntar aos outros (os gozosos, os luminosos, os dolorosos e os gloriosos)...

Não estou obviamente a conseguir persuadir-te com o meu argumento "molecular". Ainda vou tentar escrevê-lo outra vez, porque não consigo concordar com a frase "não é necessário que a Física esteja errada para que o paradigma actual sobre a geração de diversidade dos anticorpos seja substituído, basta que a mudança de paradigma seja por exemplo ao nível da Biologia Molecular". Tal como vejo a coisa, depois de termos sequenciado o genoma, ou é o DNA que não codifica para proteínas, ou é a estrutura do gene que está errada. Não consigo conceber que a "Biologia Molecular" mude se não mudar a Física como hoje a entendemos...

Quanto ao resto (incluindo o pobre Sir Karl), acho que estamos substancialmente de acordo. Comecei por dizer que o "princípio da falsificabilidade" era importante e se calhar exagerei um bocadinho nas críticas por causa da irritação que sinto por tanta gente debitar Popper perceber nada, tal como ele (;)), do mecanismo de progresso das ideias científicas...

A questão que levantas sobre os "paradigmas" virá já a seguir. Concordo contigo que a "aceitação" dos paradigmas tem muita "sociologia" por trás (e, acrescento, depende muito do prestígio granjeado pelo(a) proponente), mas acho que também aqui se aplica o argumento molecular: Quando ficamos a conhecer as moléculas (e átomos) envolvidas e as suas interacções ficamos a saber se o paradigma era "verdade" ou não. Deixa-me falar da Network primeiro e depois continuamos esta conversa do paradigma...

Santiago

1:22 da manhã, outubro 20, 2006  
Blogger Zèd Escreveu...

Ainda bem que pegas no argumento da sequencição do genoma. Quanto a mim parece-me muito sólido o modelo que o DNA codifica para proteínas, não contesto esse paradigma. Já a estrutura do gene, particularmente em Eucariotas, é uma questão muito mais complexa que me parece não estar ainda completamente resolvida. Senão vejamos, depois de se terem sequenciado completamente uns quantos genomas, do C. elegans, da Drosofila ou o Humano por exemplo, ainda não se chegou a um consenso sobre quantos genes existem em cada genoma. Tanto há genes preditos que não existem como há genes que existem que não foram de todo preditos. E não é apenas uma meia dúzia de genes estravagantes, estamos a falar de uma variação bastante considerável. Ora se a estrutura do gene fosse inteiramente conhecida a bioinformática não teria dificuldade em predizer os genes todos correctamente. Uma mudança de paradigma na estrutura do gene não é impossível, pelo menos será "superseeded" por um modelo mais completo. E continuando pela bioinformática, tudo o que seja tentar inferir a função biológica de um dado gene a partir da sua sequência continua a ser apenas uma grosseira aproximação, ainda não se sabe tanto quanto isso.

10:55 da manhã, outubro 20, 2006  

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