sexta-feira, junho 16, 2006

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Assim se faz boa desinformação

Segundo uma notícia do The Guardian é possível encomendar pedacinhos do DNA do vírus da varíola, e recebê-los em casa na volta do correio. É dada a ideia de que usando este expediente é fácil reconstruir o vírus num qualquer laboratório artesanal. No entanto o que o jornalista encomendou foi uma sequência de apenas 78 letras, quando o genoma completo do vírus tem 185 000. Reconstruir o vírus a partir desse fragmento seria como tentar pôr de pé um arranha-céus baseado só no rascunho de uma planta de casa-de-banho. Para reconstruir o vírus seriam precisas não só mais umas 2 400 encomendas postais, como um grande laboratório, bem equipado, e cientistas com preparação técnica específica. Embora não seja ainda possível fazê-lo com outros organismos, nomeadamente bactérias, é possível recriar vírus em laboratório a partir do seu DNA, já foi feito (embora apenas com vírus bem mais pequenos do que o da Varíola). Mas a questão não é essa, o The Guardian faz toda esta notícia tendo por base a ideia de que é fácil recriar vírus sem ser preciso um laboratório, e, sobretudo, que não há verificações de segurança eficazes nas encomenda de DNA que são feitas, uma prática de rotina em milhares de labortórios no mundo todo. Subjacente está a ameaça do terrorismo internacional com armas biológicas. Mas o que acontece afinal é que mais uma vez se veicula a ideia de que os cientistas e a ciência são inerentemente perigosos (como já escrevi neste post), e de uma forma que é ou desonesta, ou incompetente, ou as duas.

Primeiro, não só o fragmento de DNA que foi encomendado tinha apenas 78 bases, como ainda por cima tinha 3 alterações, em relação à sequência normal do vírus. 3 alterações em 78 bases é muito, assim passa muito mais facilmente por qualquer filtro de segurança. E é natural que passe porque o que está a ser encomendado não é sequer uma sequência do vírus da varíola, mas uma sequência alterada do vírus da varíola. Mais ainda, a empresa que vendeu o DNA tem filtros de segurança para sequências com mais de 100 bases, o que me parece um controlo até bastante apertado, tal como tem filtros para segurança, e faz verificações de cadastro para grandes encomendas, como seria necessário fazer em caso de uma ameaça real. Ou seja se tivesse sido feita uma verdadeira tentativa de recriar o vírus os sistemas de segurança que já existem teriam mais que provavelmente funcionado.

Quem é que ganha e quem é que perde com tudo isto? Ganha provavelmente o The Guardian que talvez consiga vender mais uns jornaizinhos com esta notícia sensassionalista na primeira página. Ganha provavelmente mais ainda um tal Robert Jones, que se apresenta como especialista em segurança e bioinformática e que colaborou com o jornalista que escreveu este artigo. Robert Jones tem uma empresa de software em Seatle e vende uns programas que neste caso até teriam funcionado como filtros de segurança, prevê-se que as vendas e as acções da sua empresa (se é que estão cotadas na bolsa) subam agora vertiginosamente. Quem perde são os cientistas em geral porque se adensa ainda mais a suspeição de que aquilo que fazem é inerentemente perigoso, e perdem aqueles que querem fazer um debate sério sobre estes assuntos, torna-se cada vez mais difícil conseguir falar mais alto que o ruído de fundo. Para além disso, se os sistemas de segurança que existem - que como já disse teriam muito provavelmente funcionado no caso de uma tentativa real de reconstruir o vírus da varíola - forem alterados como é implícito na peça, no mínimo aumentariam os custos da investigação que faz quem recorre a estas empresas (de sequências de DNA) e/ou tornaria os serviços dessas empresas lentos e ineficientes, no pior dos cenários teria efeitos contraproducentes estimulando um mercado negro muito mais apetecível das quem é uma verdadeira ameaça (e confesso que não sei se essa putativa ameaça do bioterrorismo existe realmente, nunca vi evidências disso).

Vale a pena ler este comentário da Nature, em que o artigo do The Guardian é descodificado, apesar do tom demasiado diplomático, e muito pouco crítico (para meu gosto) em relação à "peça" jornalística em causa. O Público publicou também uma notícia sobre este assunto na edição internet, mas não aparece na página principal do site (e desconheço se apareceu na edição impressa). Talvez se tenham apercebido a tempo do erro, o que, se foi o caso, é muito bom sinal.

Arquivado em:Ciência