quinta-feira, maio 25, 2006

Ir para a Página Principal

Quem tem medo de um Admirável Mundo Novo?

"E, não obstante o Dr. Frankenstein e o Dr. Strangelove, as catástrofes da história resultaram menos dos cientistas que dos padres e dos políticos"
François Jacob, in O Jogo dos possíveis

Realizou-se em Berkeley, de entre 20 e 22 de Maio uma conferência sobre Biologia Sintética. A revista Nature dedicou um editorial e uma notícia ao assunto. A Biologia Sintética, que ainda está numa fase muito embrionária, pretende construir organismos vivos a partir dos seu componentes essenciais, ao contrário da tradição em Biologia até ao presente de trabalhar a partir dos seres já existentes. Este campo oferece novas possibilidades com inúmeras potenciais aplicações. Oferece também, como é fácil de imaginar, novos problemas éticos, e putativos perigos. Como não conheço a fundo a matéria, não me posso alongar em detalhes. No entanto o que me parece importante nestas notícias é a importância que as que tiveram na conferência discussões de ética, e sobretudo do código de conduta dos investigadores nesta área (o resumo da discussão, que continua a decorrer, está disponível on-line). Como é demasiado normal em questões destas o tom dos protestos é elevado. A ideia principal que os investigadores avançaram, e que me parece um bom ponto de partida, é que o primeiro nível de regulação é a auto-regulação, a regulação pelos próprios investigadores, pela comunidade científica. E isto não se aplica apenas à Biologia Sintética, mas à ciência em geral.

A ideia de a investigação ser regulada, em primeiro lugar, pelos próprios cientistas, é uma ideia que parece gerar muitos anticorpos fora da comunidade científica. Convém lembrar, como faz o editorial da Nature, que regulação pela comunidade científica, não invalida outros níveis de regulação. Também convém lembrar que em muitos aspectos já são os cientistas que se auto-regulam e com muito bons resultados. Os exemplos mais claros são o sistema de publicação em revistas com avaliação pelos pares, e o sistema de financiamento, particularmente nos EUA, em que são também os pares que decidem quem é financiado e quem não é. São dois óptimos exemplos de recompensa pelo mérito (a tal "meritocracia"). No entanto tenho a impressão (e é uma opinião subjectiva, porventura não suficientemente fundamentada), de que essa resistência à regulação pela própria comunidade científica está assente num medo, ou uma desconfiança, relativamente aos investigadores.

O livro "O Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley (1932) é um excelente livro, escrito por um autor visionário, mas é um livro de ficção científica. Não é um livro "apenas" de ficção científica, tem claramente a intenção de questionar, e levantar problemas éticos, e deve ser lido sob esse prisma. No entanto (nova opinião subjectiva) parece ter-se alojado no subconsciente colectivo para não mais sair. É particularmente evidente quando se assiste a um debate televisivo sobre clonagem, os receios criados por misturar realidades com confabulações fantásticas. Não sei se o livro de Aldous Huxley é uma causa directa ou indirecta desses receios, ou se essa era sequer a intenção do próprio autor (e talvez até fosse). Em qualquer caso funciona como uma excelente representação da imagem que se tem da ciência (ou pelo menos de uma parte dela). Imagem que me parece uma mistificação muito desfazada da realidade.

Sou de opinião que a ciência deve ser regulada em primeiro lugar pelos cientistas, e sobretudo quando são assuntos internos à ciência (o que investigar, como investigar). Tem que haver, naturalmente, outros níveis de regulação. Depois é preciso também saber o que fazer com as descobertas científicas, quando o saber produzido sai da comunidade científica para o resto da sociedade. Ai, devem ter-se em conta os pareceres dos investigadores, mas já não é aos investigadores que compete regular, é à própria sociedade (através das suas instituições). Numa sociedade democrática, a qualquer nível de regulação, ela tem que ser feita sob o escrutínio público. Quero dizer, mesmo ao nível em que actua a actua a auto-regulação deve haver transparência no processo, e estar sempre sujeito ao olhar do público. Mas para isso a opinião pública devia estar (e em geral, não está) informada, e sobretudo seria desejável haver antes do mais uma desmistificação.

Arquivado em:Ciência

3 Comments:

Blogger Zèd Escreveu...

Eu de facto não sei se o "Admirável Mundo Novo" ou o Frankstein tiveram influência directa ou indirecta (a tal forma mediada e difusa de que falas, mas toda a gente conhece o Franakenstein, ocupa um espaço importante no imaginário colectivo), ou se não teve sequer influência. De qualquer modo são mitos que encarnam ou representam muito bem o medo de que falo, têm pelo menos um valor ilustrativo.
Tens razão, quando falas da religião e da influência que tem nesta questão. Não estava a pensar propriamente nisso, mas é uma parte importante do puzzle.

9:33 da tarde, maio 26, 2006  
Blogger Marco Aurélio Escreveu...

Cheguei até o Agreste Avena procurando saber quem tinha usado a palavra ciência nas postagens. Pode até ser que a ciência deve ser regulada apenas pelos cientistas, em especial quando os assuntos são internos à própria ciência, mas o que investigar não é tarefa apenas dos cientistas. Alguns problemas como você sabe surgiram com os leigos. Você viu que um estudante de física ajudou na descoberta de três exoplanetas?

O Boatemática te aguarda.

Um abraço

Marco Aurélio

2:40 da tarde, maio 27, 2006  
Blogger Zèd Escreveu...

Marco Aurélio, é um prazer ter um comentário vindo do Brasil. Quando falava da regulação pelos cientistas estava a pensar mais em questões éticas, e também políticas. E de qualquer modo sempre sob o olhar do público. Essa regulação não deve impedir os contributo exteriores, ainda que raros, podem trazer sempre um ponto de vista original.

P.S. - Gostei do Boatemática

8:12 da tarde, maio 27, 2006  

Enviar um comentário

<< Home