A ti' Vicência
Estava outro dia à conversa com a Embaixatriz da Lusofonia, que por esta altura está do outro lado do Atlântico, foi uma dessas conversas por escrito em tempo real, coisas das novas tecnologias. Nisto, sei lá como, a conversa foi dar à ti' Vicência. Ora eu que falo amiúde sobre a ti' Vicência, não tinha ainda percebido realmente o que ti' Vicência representa(va) até a Embaixatriz ter tido a bondade de mo explicar. Ser amigo de pessoas que possuem rigor intelectual destas vantagens.
A ti' Vicência, para começo de conversa, não era minha tia, era prima do meu avô. Ganhou por mérito próprio o direito de se fazer tratar por "ti'", direito esse respeitado por toda a aldeia, e arredores, como não podia deixar de ser. Eu só soube o exacto grau de parentesco, sem margem para dúvidas, quando lho perguntei a ela, isto porque era a única pessoa da aldeia e da família (um e outro conceito confundem-se) que conseguia dizer o grau de parentesco de qualquer pessoa da família/aldeia com qualquer outra pessoa da aldeia/família. Esta capacidade não se limitava aos vivos, a ti' Vicência era capaz te traçar a genealogia da família até ao princípio do sec. XIX. Tendo em conta que as linhagens se assemelham mais a uma rede do que a uma árvore, o talento da ti' Vicência requeria uma formidável capacidade de abstracção e memória. Um pequeno pormenor; a ti' Vicência nunca soube ler nem escrever, portanto tudo o que citava era de memória, e obviamente não recorria a cábulas. E a sua memória abarcava não só tudo o que se tinha passado durante o seu tempo de vida (no que à família dizia respeito) mas tudo o que tinha ouvido a mãe e a avó contar-lhe, com os mais deliciosos pormenores.
Sempre me lembro de quando ia à aldeia ver a ti' Vicência voltar do campo, e passar pela estrada da fonte a caminho de casa. Levava sempre um foice ao ombro, as costas dobradas, um caminhar bamboleante e um sorriso permanente. Tinha uns lindíssimos olhos azuis. Os encontros com a ti' Vicência eram frequentes, mas só uma vez fui lá a casa com o intuito concreto de fazer perguntas sobre a família, e conhecer um pouco da história da aldeia. Recebeu-nos (a mim, ao meu pai e ao meu irmão) na eira, sentou-se no seu modo muito próprio, que fazia impressão a toda e gente, com as pernas cruzadas e assente sobre o joelhos. Era assim que se sentia confortável, podia ficar horas ali, aliás ficou. A melhor maneira de começar a conversa era perguntar o parentesco entre dois membros da família escolhidos aleatoriamente e tentar traçar os laços familiares até um antepassado comum. E partir daí era deixar seguir a conversa, e aí a importância de ter alguém como a ti' Vicência na família vem ao de cimo, a ti' Vicência - ela própria - é uma lição de história. Com ela fiquei a conhecer hábitos das gentes de que não tinha ideia. Por exemplo pentear as raparigas era como que um ritual entre mulheres, fazia-se em grupo e penteavam-se umas às outras, e a partir daí podia traçar-se a imagem que se iria ter de determinada rapariga para o resto da vida "Ah, a vossa tia M. sempre foi muito piegas na altura de pentear...". Falando com a ti' Vicência apercebemo-nos de certos padrões que não sendo propriamente regras explícitas eram habituais, por exemplo as mulheres casavam e ficam na aldeia, os homens muitas vezes vinham de fora. A ti' Vicência era também de uma enorme sinceridade, deu para aprender qualquer coisa sobre os padrões morais, afirmava e repetia convictamente ter casado por amor (e qualquer humano digno do epíteto acreditaria sem pestanejar), e não se coibia de acusar o patriarca da família de não o ter feito. Quando este começou a construir a casa, onde iria supostamente viver com a mulher com quem estava comprometido, chegou ao fim de um dia de trabalho e tinha as mãos em sangue. Aí mudou de ideias e fugiu para Espanha, para voltar mais tarde e casar com outra mulher mais afortunada. A ti' Vicência mostrou-nos como era a mentalidade de outras alturas, quando por exemplo se referia às Caetanas "essas não eram de cá, eram de fora, eram estrangeiras", de facto eram da Passagem, uma outra aldeia que fica a oito quilómetros. Com ti' Vicência aprendemos ainda como eram as crenças: partes da história que nos contou tinham como fonte antepassados que regressaram para falar com gentes de lá, e enquanto nos contava essas partes proibia-me veementemente de tomar notas, mesmo não sabendo o que estava a escrever (como é óbvio eu estava ainda a tentar pôr no papel o que ela tinha dito meia-hora antes).
Mas a estória mais engraçada que ficou dessa tarde foi outra, e deu-nos um cheirinho de como as gentes num certo passado viveram acontecimentos de que só tivemos conhecimento pelos livros de História. Estava a ti' Vicência a contar-nos a história da família, já em gerações que nos escapavam totalmente, e fala de um exército cujos soldados "batiam com os pés com tanta força no chão que as portas até tremiam". E nós a tentar ver do que ela falava, não era obviamente a II Guerra, aliás nem a I Guerra podia ser, teria que ser anterior dado o número de gerações, talvez as lutas entre liberais e absolutistas, mas não fazia muito sentido. Nisto diz a ti' Vicência "era um tal de Mopoleão". E de facto batia certinho, quando contámos as gerações, perguntamos as idades (tudo coisas que a ti' Vicência sabia com muita aproximação) a coisa de facto batia certo, ia dar às invasões Napoleónicas. E a soube ainda colocar o acontecimento no espaço, as tropas marchavam na estrada da Passagem, a tal aldeia a oito quilómetros que era um ponto estratégico, permitia atravessar o rio. É importante dizer ainda que as diferentes partes da história que se cruzavam batiam sempre certo, a história que contava era muito coerente.
O que acho que a Embaixatriz me quis dizer é que de facto a ti' Vicência não representava a história, ela ERA a história da família. A ti' Vicência morreu há pouco mais de três anos, não muito longe dos cem, e com ela partiu mais de um século de história, testemunhos de pessoas que viveram acontecimentos e de que a ti' Vicência era a última pessoa ter guardado essa memória. Tirei notas dessa conversa, mas nem sei onde andam, nem me preocupo muito, era-me impossível substituir a ti' Vicência por um escrito, por muito bom que fosse. Quem falou com as pessoas foi ela, quem guardou a memória foi ela, e quer eu queira ou não, com a morte da ti' Vicência há toda uma história que passou à História. Talvez tenha que ser mesmo assim.
A ti' Vicência, para começo de conversa, não era minha tia, era prima do meu avô. Ganhou por mérito próprio o direito de se fazer tratar por "ti'", direito esse respeitado por toda a aldeia, e arredores, como não podia deixar de ser. Eu só soube o exacto grau de parentesco, sem margem para dúvidas, quando lho perguntei a ela, isto porque era a única pessoa da aldeia e da família (um e outro conceito confundem-se) que conseguia dizer o grau de parentesco de qualquer pessoa da família/aldeia com qualquer outra pessoa da aldeia/família. Esta capacidade não se limitava aos vivos, a ti' Vicência era capaz te traçar a genealogia da família até ao princípio do sec. XIX. Tendo em conta que as linhagens se assemelham mais a uma rede do que a uma árvore, o talento da ti' Vicência requeria uma formidável capacidade de abstracção e memória. Um pequeno pormenor; a ti' Vicência nunca soube ler nem escrever, portanto tudo o que citava era de memória, e obviamente não recorria a cábulas. E a sua memória abarcava não só tudo o que se tinha passado durante o seu tempo de vida (no que à família dizia respeito) mas tudo o que tinha ouvido a mãe e a avó contar-lhe, com os mais deliciosos pormenores.
Sempre me lembro de quando ia à aldeia ver a ti' Vicência voltar do campo, e passar pela estrada da fonte a caminho de casa. Levava sempre um foice ao ombro, as costas dobradas, um caminhar bamboleante e um sorriso permanente. Tinha uns lindíssimos olhos azuis. Os encontros com a ti' Vicência eram frequentes, mas só uma vez fui lá a casa com o intuito concreto de fazer perguntas sobre a família, e conhecer um pouco da história da aldeia. Recebeu-nos (a mim, ao meu pai e ao meu irmão) na eira, sentou-se no seu modo muito próprio, que fazia impressão a toda e gente, com as pernas cruzadas e assente sobre o joelhos. Era assim que se sentia confortável, podia ficar horas ali, aliás ficou. A melhor maneira de começar a conversa era perguntar o parentesco entre dois membros da família escolhidos aleatoriamente e tentar traçar os laços familiares até um antepassado comum. E partir daí era deixar seguir a conversa, e aí a importância de ter alguém como a ti' Vicência na família vem ao de cimo, a ti' Vicência - ela própria - é uma lição de história. Com ela fiquei a conhecer hábitos das gentes de que não tinha ideia. Por exemplo pentear as raparigas era como que um ritual entre mulheres, fazia-se em grupo e penteavam-se umas às outras, e a partir daí podia traçar-se a imagem que se iria ter de determinada rapariga para o resto da vida "Ah, a vossa tia M. sempre foi muito piegas na altura de pentear...". Falando com a ti' Vicência apercebemo-nos de certos padrões que não sendo propriamente regras explícitas eram habituais, por exemplo as mulheres casavam e ficam na aldeia, os homens muitas vezes vinham de fora. A ti' Vicência era também de uma enorme sinceridade, deu para aprender qualquer coisa sobre os padrões morais, afirmava e repetia convictamente ter casado por amor (e qualquer humano digno do epíteto acreditaria sem pestanejar), e não se coibia de acusar o patriarca da família de não o ter feito. Quando este começou a construir a casa, onde iria supostamente viver com a mulher com quem estava comprometido, chegou ao fim de um dia de trabalho e tinha as mãos em sangue. Aí mudou de ideias e fugiu para Espanha, para voltar mais tarde e casar com outra mulher mais afortunada. A ti' Vicência mostrou-nos como era a mentalidade de outras alturas, quando por exemplo se referia às Caetanas "essas não eram de cá, eram de fora, eram estrangeiras", de facto eram da Passagem, uma outra aldeia que fica a oito quilómetros. Com ti' Vicência aprendemos ainda como eram as crenças: partes da história que nos contou tinham como fonte antepassados que regressaram para falar com gentes de lá, e enquanto nos contava essas partes proibia-me veementemente de tomar notas, mesmo não sabendo o que estava a escrever (como é óbvio eu estava ainda a tentar pôr no papel o que ela tinha dito meia-hora antes).
Mas a estória mais engraçada que ficou dessa tarde foi outra, e deu-nos um cheirinho de como as gentes num certo passado viveram acontecimentos de que só tivemos conhecimento pelos livros de História. Estava a ti' Vicência a contar-nos a história da família, já em gerações que nos escapavam totalmente, e fala de um exército cujos soldados "batiam com os pés com tanta força no chão que as portas até tremiam". E nós a tentar ver do que ela falava, não era obviamente a II Guerra, aliás nem a I Guerra podia ser, teria que ser anterior dado o número de gerações, talvez as lutas entre liberais e absolutistas, mas não fazia muito sentido. Nisto diz a ti' Vicência "era um tal de Mopoleão". E de facto batia certinho, quando contámos as gerações, perguntamos as idades (tudo coisas que a ti' Vicência sabia com muita aproximação) a coisa de facto batia certo, ia dar às invasões Napoleónicas. E a soube ainda colocar o acontecimento no espaço, as tropas marchavam na estrada da Passagem, a tal aldeia a oito quilómetros que era um ponto estratégico, permitia atravessar o rio. É importante dizer ainda que as diferentes partes da história que se cruzavam batiam sempre certo, a história que contava era muito coerente.
O que acho que a Embaixatriz me quis dizer é que de facto a ti' Vicência não representava a história, ela ERA a história da família. A ti' Vicência morreu há pouco mais de três anos, não muito longe dos cem, e com ela partiu mais de um século de história, testemunhos de pessoas que viveram acontecimentos e de que a ti' Vicência era a última pessoa ter guardado essa memória. Tirei notas dessa conversa, mas nem sei onde andam, nem me preocupo muito, era-me impossível substituir a ti' Vicência por um escrito, por muito bom que fosse. Quem falou com as pessoas foi ela, quem guardou a memória foi ela, e quer eu queira ou não, com a morte da ti' Vicência há toda uma história que passou à História. Talvez tenha que ser mesmo assim.
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