terça-feira, julho 18, 2006

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Nem todas as assimetrias e desigualdades são más

«Como pode a desordem da natura
Fazer tão diferentes na vontade
A quem fez tão conformes na ventura?»

Luís Vaz de Camões, soneto 36



Claro que não estou a falar das assimetrias e desigualdades sociais, mas há outras que até são boas. Por exemplo, o leitor algumas se colocou a questão: "Se um célula se divide para dar origem a duas células iguais, como é que nós que começámos por ser só uma célula, o Ovo, temos tantos tipos de células diferentes (neurónios, células musculares, células ósseas, etc...)?"? Eu, por exemplo, faço essa pergunta a mim próprio todos os dias (se bem que isso é só porque preciso de fazer alguma coisa para ganhar a vida, e pagar as contas). Felizmente ainda não consegui encontrar uma resposta cabal e definitiva, porque se conseguisse ia para o desemprego.

Apesar de tudo, a ciência já conseguiu pedaços de resposta, digamos que já foram encontradas algumas peças do puzzle. E como o próprio Camões já tinha intuído, a desordem da natura pode tornar muito diferente o destino daqueles que nascem na sua essência idênticos. Um dos mecanismos para chegar essa diferença entre células-irmãs (não é o único, mas é porventura o mais elegante) é a divisão celular assimétrica. Na realidade as duas células que resultam de uma divisão não são necessariamente iguais no seu conteúdo, apesar de serem geneticamente idênticas (os cromossomas são divididos igualmente pelas células-filhas) por vezes alguns componentes são transmitidos apenas a uma das células.

Veja-se por exemplo aquela imagem ali em cima; utilizando técnicas de microscopia modernas (no caso microscopia de fluorescência confocal) pode ver-se a vermelho a célula percursora do orgão sensorial da mosca. Há outras células à volta, mas a técnica permite-nos não vê-las, e por isso podemos ignorá-las e concentrarmo-nos nesta célula, que chamamos SOP. Um mosca tem várias SOPs e cada uma delas divide-se várias vezes para dar origem a um orgão sensorial, na realidade um pêlo, que é um sensor do tacto. Cada orgão tem quatro células que são muito diferentes entre si - embora provenham todas da SOP -, duas para a parte exterior, o pêlo propriamente dito, e duas para a parte interna, um neurónio e uma célula de suporte do neurónio . Ora como é que a SOP dá origem a estas células tão diferentes entre si? Na mesma foto vê-se ainda a verde, no bordo da célula, uma aura em forma de crescente, é uma proteína (que por acaso se chama Bazooka). A forma de crescente quer dizer que há muito mais dessa proteína de um lado da célula do que do outro. Finalmente a azul, no meio da célula estão os cromossomas, bem alinhados, o que só acontece quando a célula está prestes a dividir-se. Ora quando isso acontecer metade dos cromossomas vai para a direita e metade vai para a esquerda, e a célula-filha do lado esquerdo vai fica com muito mais da proteína Bazooka (verde) do que a sua célula-irmã. A consequência é que a célula que ficou com mais Bazooka vai dar origem ao pêlo propriamente dito, e a outra vai dar origem à parte neuronal do orgão. Se houver um erro na repartição da Bazooka o orgão fica todo lixado, ou com pêlos a mais e sem neurónios, ou o inverso. Et voilà, uma divisão celular assimétrica.

Arquivado em:Ciência