João César das Neves, a genética e as lésbicas suecas
A propósito da última crónica de João César das Neves no DN a que cheguei através deste post. Nesta crónica João César das Neves dispara em pelo menos duas direcções diferentes, por um lado enviezamento dos jornalistas em certas questões, por outro o valor que certos estudos científicos podem ter na formulação de valores morais. A mim interessa-me este segundo ponto.
Citando um artigo na Proceedings of the National Academy of Sciences de Berglund et al. (já agora podia referir o nome dos autores para que o leitor possa mais facilmente procurar a informação), de que se pode ler o resumo aqui, diz César das Neves:
"Segundo as notícias, essa análise demonstra a "tendência homossexual determinada à nascença" e que a orientação sexual é genética.
Basta olhar para o conteúdo para notar que o trabalho citado não prova nada disso. Como de costume, os títulos pouco têm a ver com a realidade. O estudo, bastante limitado e preliminar, apenas analisou a reacção cerebral de algumas (poucas) pessoas a odores de hormonas."
Já que refere o conteúdo, podia elaborar um pouco mais no assunto e fundamentar as suas conclusões, em vez de afirmar liminarmente que não prova nada, ficando o leitor sem saber porquê. E de facto até tem razão quando diz que o artigo não prova que a tendência homossexual seja determinada à nascença. Não prova nem pretende provar. Os autores nem uma só vez em todo o artigo se referem a essa possibilidade, muito menos discuti-la ou testá-la (se algum jornalista tirou essa conclusão do artigo errou). Diz César das Neves que este estudo "apenas analisou a reacção cerebral a odores de hormonas" como se isso fosse coisa pouca. O estudo não é nada limitado. Neste tipo de estudos doze casos é já bastante significativo, e, sobretudo, há testes estatísticos pare se aferir se são poucos casos ou não, e que foram utilizados cuidadosamente neste caso. A análise estatística é mesmo apresentada sob diferentes cenários possíveis e as conclusões são as mesmas. Mais ainda, este artigo é tudo menos preliminar, vem já na sequência de um outro em que a mesma questão foi abordada em relação a homens homossexuais, e é aliás coerente com os resultados anteriores.
Mas afinal o que demonstra este artigo? Que o modo como reage o cérebro, mais especificamente o hipotálamo, de mulheres lésbicas ao odor de feromonas (hormonas sexuais) se assemelha muito mais ao modo como reage o hipotálamo de homens heterossexuais do o de mulheres heterossexuais. Ou seja a homossexualidade tem uma tradução fisiológica.
De um modo mais detalhado (quem não quer saber de detalhes salte para o parágrafo seguinte). Há duas hormonas a AND que é produzida em maior quantidade pelos homens que pelas mulheres, e EST que é produzido em maior abundância por mulheres do que por homens. AND e EST são muito provavelmente feromonas humanas, hormonas utilizadas na "comunicação sexual", destinadas a estimular (ou não) potenciais parceiros. O hipotálamo em homens e mulheres heterossexuais responde de forma de forma distinta à AND e à EST, o que quer dizer que quando expostos a uma destas duas substâncias o hipotálamo activa regiões diferentes consoante se é homem ou mulher (heterossexuais). Não sabemos o significado dessa diferença, mas ela existe e pode servir como critério de estudo. Mais, foi comprovado experimentalmente noutros mamíferos que o hipotálamo desempenha um papel importante na escolha do parceiro sexual, o que indica que aquelas diferenças são relevantes. Ora este estudo mostra que a reacção de mulheres lésbicas à EST (que é produzida por mulheres) é semelhante àquela observada em homens do em mulheres heterossexuais, e que contrariamente às mulheres heterossexuais não respondem à AND. O mesmo grupo tinha já publicado resultados que mostram que homens homossexuais, no mesmos tipo de testes reagem como mulheres heterossexuais. Curiosamente a semelhança é ainda maior neste último caso.
Estes resultados não sugerem nem refutam uma componente genética da homossexualidade. Esta semelhança entre o comportamento do hipotálamo de homossexuais e heterossexuais do sexo oposto pode ser uma causa da homossexualidade como pode ser uma consequência. Sendo o cérebro adaptável, certos padrões, como neste caso o hipotálamo (ou a relação entre QI e o desenvolvimento do córtex cerebral), tanto podem ser produto de uma aprendizagem como podem ser inatos.
E tudo isto contradiz a tese de César das Neves? Contraria antes de mais o nível simplista, leia-se redutor, a que César das Neves faz descer a questão. Ninguém quer fazer querer que a (homos)sexualidade é uma questão meramente genética. Há possivelmente (e provavelmente) factores genéticos como há factores ambientais envolvidos na escolha da sexualidade. A elaboração de juízos morais deve ter em conta essa complexidade. Nessa visão simplista César das Neves separa incorre no velho "(O) Erro de Descartes" (cf. António Damásio), e separa na natureza humana o que é racional do que é instinto "Apesar destes esforços de manipulação, a atitude sexual está longe de ser um instinto acéfalo absolutamente incontrolável. Cada um de nós, pessoas racionais, continua a poder determinar a sua vida de forma autónoma." Ao arrepio de qualquer evidência empírica César das Neves já decidiu. O que este, e muitos outros estudos, vêm demonstrar é que as nossas decisões racionais têm uma tradução fisiológica, estão intimamente relacionadas com aquilo a que chama "instinto acéfalo", fazem parte de uma mesma unidade.
Mas a questão central no artigo de João César das Neves é o valor destes estudos na elaboração de um juízo moral: "Isto significa que, quanto à questão valorativa, estas investigações são irrelevantes." Não são de todo irrelevantes! Os valores morais e éticos são, e devem ser influenciados pelo avanço do conhecimento. Pegando nos exemplos que dá o próprio César das Neves, o racismo e a homossexualidade. Porque será que as coisas mudaram nos últimos cem anos? A antropologia, mesmo carregada de preconceitos raciais, sobretudo na primeira metade do séc.XX nunca conseguiu demonstrar diferenças relevantes entre "raças", aliás acabou por demonstrar que, do ponte de vista biológico, o conceito de "raça" na espécie humana nem faz sentido. Será que esses estudos contribuíram para mudar o preconceito racial? Uma doença para ser considerada como tal deve provocar morte prematura ou incómodo grave, a medicina nunca demonstrou nem uma coisa nem outra para a homossexualidade. Será que isso contribui para a ser retirada da lista das doenças psiquiátricas? O artigo de Berglund et al. ao demonstrar que a homossexualidade tem manifestações fisiológicas diz-nos que, e contrariamente ao que defende César das Neves, a homossexualidade faz parte da natureza humana para além da simples decisão racional. Descobertas destas podem, e é bom que o façam, mudar a nossa visão sobre a homossexualidade, logo podem também influenciar o julgamento moral que delas fazemos.
E afinal de onde vem a mudança dos valores morais, ao longo do tempo, senão da evolução do conhecimento que temos do mundo?
Citando um artigo na Proceedings of the National Academy of Sciences de Berglund et al. (já agora podia referir o nome dos autores para que o leitor possa mais facilmente procurar a informação), de que se pode ler o resumo aqui, diz César das Neves:
"Segundo as notícias, essa análise demonstra a "tendência homossexual determinada à nascença" e que a orientação sexual é genética.
Basta olhar para o conteúdo para notar que o trabalho citado não prova nada disso. Como de costume, os títulos pouco têm a ver com a realidade. O estudo, bastante limitado e preliminar, apenas analisou a reacção cerebral de algumas (poucas) pessoas a odores de hormonas."
Já que refere o conteúdo, podia elaborar um pouco mais no assunto e fundamentar as suas conclusões, em vez de afirmar liminarmente que não prova nada, ficando o leitor sem saber porquê. E de facto até tem razão quando diz que o artigo não prova que a tendência homossexual seja determinada à nascença. Não prova nem pretende provar. Os autores nem uma só vez em todo o artigo se referem a essa possibilidade, muito menos discuti-la ou testá-la (se algum jornalista tirou essa conclusão do artigo errou). Diz César das Neves que este estudo "apenas analisou a reacção cerebral a odores de hormonas" como se isso fosse coisa pouca. O estudo não é nada limitado. Neste tipo de estudos doze casos é já bastante significativo, e, sobretudo, há testes estatísticos pare se aferir se são poucos casos ou não, e que foram utilizados cuidadosamente neste caso. A análise estatística é mesmo apresentada sob diferentes cenários possíveis e as conclusões são as mesmas. Mais ainda, este artigo é tudo menos preliminar, vem já na sequência de um outro em que a mesma questão foi abordada em relação a homens homossexuais, e é aliás coerente com os resultados anteriores.
Mas afinal o que demonstra este artigo? Que o modo como reage o cérebro, mais especificamente o hipotálamo, de mulheres lésbicas ao odor de feromonas (hormonas sexuais) se assemelha muito mais ao modo como reage o hipotálamo de homens heterossexuais do o de mulheres heterossexuais. Ou seja a homossexualidade tem uma tradução fisiológica.
De um modo mais detalhado (quem não quer saber de detalhes salte para o parágrafo seguinte). Há duas hormonas a AND que é produzida em maior quantidade pelos homens que pelas mulheres, e EST que é produzido em maior abundância por mulheres do que por homens. AND e EST são muito provavelmente feromonas humanas, hormonas utilizadas na "comunicação sexual", destinadas a estimular (ou não) potenciais parceiros. O hipotálamo em homens e mulheres heterossexuais responde de forma de forma distinta à AND e à EST, o que quer dizer que quando expostos a uma destas duas substâncias o hipotálamo activa regiões diferentes consoante se é homem ou mulher (heterossexuais). Não sabemos o significado dessa diferença, mas ela existe e pode servir como critério de estudo. Mais, foi comprovado experimentalmente noutros mamíferos que o hipotálamo desempenha um papel importante na escolha do parceiro sexual, o que indica que aquelas diferenças são relevantes. Ora este estudo mostra que a reacção de mulheres lésbicas à EST (que é produzida por mulheres) é semelhante àquela observada em homens do em mulheres heterossexuais, e que contrariamente às mulheres heterossexuais não respondem à AND. O mesmo grupo tinha já publicado resultados que mostram que homens homossexuais, no mesmos tipo de testes reagem como mulheres heterossexuais. Curiosamente a semelhança é ainda maior neste último caso.
Estes resultados não sugerem nem refutam uma componente genética da homossexualidade. Esta semelhança entre o comportamento do hipotálamo de homossexuais e heterossexuais do sexo oposto pode ser uma causa da homossexualidade como pode ser uma consequência. Sendo o cérebro adaptável, certos padrões, como neste caso o hipotálamo (ou a relação entre QI e o desenvolvimento do córtex cerebral), tanto podem ser produto de uma aprendizagem como podem ser inatos.
E tudo isto contradiz a tese de César das Neves? Contraria antes de mais o nível simplista, leia-se redutor, a que César das Neves faz descer a questão. Ninguém quer fazer querer que a (homos)sexualidade é uma questão meramente genética. Há possivelmente (e provavelmente) factores genéticos como há factores ambientais envolvidos na escolha da sexualidade. A elaboração de juízos morais deve ter em conta essa complexidade. Nessa visão simplista César das Neves separa incorre no velho "(O) Erro de Descartes" (cf. António Damásio), e separa na natureza humana o que é racional do que é instinto "Apesar destes esforços de manipulação, a atitude sexual está longe de ser um instinto acéfalo absolutamente incontrolável. Cada um de nós, pessoas racionais, continua a poder determinar a sua vida de forma autónoma." Ao arrepio de qualquer evidência empírica César das Neves já decidiu. O que este, e muitos outros estudos, vêm demonstrar é que as nossas decisões racionais têm uma tradução fisiológica, estão intimamente relacionadas com aquilo a que chama "instinto acéfalo", fazem parte de uma mesma unidade.
Mas a questão central no artigo de João César das Neves é o valor destes estudos na elaboração de um juízo moral: "Isto significa que, quanto à questão valorativa, estas investigações são irrelevantes." Não são de todo irrelevantes! Os valores morais e éticos são, e devem ser influenciados pelo avanço do conhecimento. Pegando nos exemplos que dá o próprio César das Neves, o racismo e a homossexualidade. Porque será que as coisas mudaram nos últimos cem anos? A antropologia, mesmo carregada de preconceitos raciais, sobretudo na primeira metade do séc.XX nunca conseguiu demonstrar diferenças relevantes entre "raças", aliás acabou por demonstrar que, do ponte de vista biológico, o conceito de "raça" na espécie humana nem faz sentido. Será que esses estudos contribuíram para mudar o preconceito racial? Uma doença para ser considerada como tal deve provocar morte prematura ou incómodo grave, a medicina nunca demonstrou nem uma coisa nem outra para a homossexualidade. Será que isso contribui para a ser retirada da lista das doenças psiquiátricas? O artigo de Berglund et al. ao demonstrar que a homossexualidade tem manifestações fisiológicas diz-nos que, e contrariamente ao que defende César das Neves, a homossexualidade faz parte da natureza humana para além da simples decisão racional. Descobertas destas podem, e é bom que o façam, mudar a nossa visão sobre a homossexualidade, logo podem também influenciar o julgamento moral que delas fazemos.
E afinal de onde vem a mudança dos valores morais, ao longo do tempo, senão da evolução do conhecimento que temos do mundo?
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