terça-feira, maio 23, 2006

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João César das Neves, a genética e as lésbicas suecas

A propósito da última crónica de João César das Neves no DN a que cheguei através deste post. Nesta crónica João César das Neves dispara em pelo menos duas direcções diferentes, por um lado enviezamento dos jornalistas em certas questões, por outro o valor que certos estudos científicos podem ter na formulação de valores morais. A mim interessa-me este segundo ponto.

Citando um artigo na Proceedings of the National Academy of Sciences de Berglund et al. (já agora podia referir o nome dos autores para que o leitor possa mais facilmente procurar a informação), de que se pode ler o resumo aqui, diz César das Neves:

"Segundo as notícias, essa análise demonstra a "tendência homossexual determinada à nascença" e que a orientação sexual é genética.

Basta olhar para o conteúdo para notar que o trabalho citado não prova nada disso. Como de costume, os títulos pouco têm a ver com a realidade. O estudo, bastante limitado e preliminar, apenas analisou a reacção cerebral de algumas (poucas) pessoas a odores de hormonas.
"

Já que refere o conteúdo, podia elaborar um pouco mais no assunto e fundamentar as suas conclusões, em vez de afirmar liminarmente que não prova nada, ficando o leitor sem saber porquê. E de facto até tem razão quando diz que o artigo não prova que a tendência homossexual seja determinada à nascença. Não prova nem pretende provar. Os autores nem uma só vez em todo o artigo se referem a essa possibilidade, muito menos discuti-la ou testá-la (se algum jornalista tirou essa conclusão do artigo errou). Diz César das Neves que este estudo "apenas analisou a reacção cerebral a odores de hormonas" como se isso fosse coisa pouca. O estudo não é nada limitado. Neste tipo de estudos doze casos é já bastante significativo, e, sobretudo, há testes estatísticos pare se aferir se são poucos casos ou não, e que foram utilizados cuidadosamente neste caso. A análise estatística é mesmo apresentada sob diferentes cenários possíveis e as conclusões são as mesmas. Mais ainda, este artigo é tudo menos preliminar, vem já na sequência de um outro em que a mesma questão foi abordada em relação a homens homossexuais, e é aliás coerente com os resultados anteriores.

Mas afinal o que demonstra este artigo? Que o modo como reage o cérebro, mais especificamente o hipotálamo, de mulheres lésbicas ao odor de feromonas (hormonas sexuais) se assemelha muito mais ao modo como reage o hipotálamo de homens heterossexuais do o de mulheres heterossexuais. Ou seja a homossexualidade tem uma tradução fisiológica.

De um modo mais detalhado (quem não quer saber de detalhes salte para o parágrafo seguinte). Há duas hormonas a AND que é produzida em maior quantidade pelos homens que pelas mulheres, e EST que é produzido em maior abundância por mulheres do que por homens. AND e EST são muito provavelmente feromonas humanas, hormonas utilizadas na "comunicação sexual", destinadas a estimular (ou não) potenciais parceiros. O hipotálamo em homens e mulheres heterossexuais responde de forma de forma distinta à AND e à EST, o que quer dizer que quando expostos a uma destas duas substâncias o hipotálamo activa regiões diferentes consoante se é homem ou mulher (heterossexuais). Não sabemos o significado dessa diferença, mas ela existe e pode servir como critério de estudo. Mais, foi comprovado experimentalmente noutros mamíferos que o hipotálamo desempenha um papel importante na escolha do parceiro sexual, o que indica que aquelas diferenças são relevantes. Ora este estudo mostra que a reacção de mulheres lésbicas à EST (que é produzida por mulheres) é semelhante àquela observada em homens do em mulheres heterossexuais, e que contrariamente às mulheres heterossexuais não respondem à AND. O mesmo grupo tinha já publicado resultados que mostram que homens homossexuais, no mesmos tipo de testes reagem como mulheres heterossexuais. Curiosamente a semelhança é ainda maior neste último caso.

Estes resultados não sugerem nem refutam uma componente genética da homossexualidade. Esta semelhança entre o comportamento do hipotálamo de homossexuais e heterossexuais do sexo oposto pode ser uma causa da homossexualidade como pode ser uma consequência. Sendo o cérebro adaptável, certos padrões, como neste caso o hipotálamo (ou a relação entre QI e o desenvolvimento do córtex cerebral), tanto podem ser produto de uma aprendizagem como podem ser inatos.

E tudo isto contradiz a tese de César das Neves? Contraria antes de mais o nível simplista, leia-se redutor, a que César das Neves faz descer a questão. Ninguém quer fazer querer que a (homos)sexualidade é uma questão meramente genética. Há possivelmente (e provavelmente) factores genéticos como há factores ambientais envolvidos na escolha da sexualidade. A elaboração de juízos morais deve ter em conta essa complexidade. Nessa visão simplista César das Neves separa incorre no velho "(O) Erro de Descartes" (cf. António Damásio), e separa na natureza humana o que é racional do que é instinto "Apesar destes esforços de manipulação, a atitude sexual está longe de ser um instinto acéfalo absolutamente incontrolável. Cada um de nós, pessoas racionais, continua a poder determinar a sua vida de forma autónoma." Ao arrepio de qualquer evidência empírica César das Neves já decidiu. O que este, e muitos outros estudos, vêm demonstrar é que as nossas decisões racionais têm uma tradução fisiológica, estão intimamente relacionadas com aquilo a que chama "instinto acéfalo", fazem parte de uma mesma unidade.

Mas a questão central no artigo de João César das Neves é o valor destes estudos na elaboração de um juízo moral: "Isto significa que, quanto à questão valorativa, estas investigações são irrelevantes." Não são de todo irrelevantes! Os valores morais e éticos são, e devem ser influenciados pelo avanço do conhecimento. Pegando nos exemplos que dá o próprio César das Neves, o racismo e a homossexualidade. Porque será que as coisas mudaram nos últimos cem anos? A antropologia, mesmo carregada de preconceitos raciais, sobretudo na primeira metade do séc.XX nunca conseguiu demonstrar diferenças relevantes entre "raças", aliás acabou por demonstrar que, do ponte de vista biológico, o conceito de "raça" na espécie humana nem faz sentido. Será que esses estudos contribuíram para mudar o preconceito racial? Uma doença para ser considerada como tal deve provocar morte prematura ou incómodo grave, a medicina nunca demonstrou nem uma coisa nem outra para a homossexualidade. Será que isso contribui para a ser retirada da lista das doenças psiquiátricas? O artigo de Berglund et al. ao demonstrar que a homossexualidade tem manifestações fisiológicas diz-nos que, e contrariamente ao que defende César das Neves, a homossexualidade faz parte da natureza humana para além da simples decisão racional. Descobertas destas podem, e é bom que o façam, mudar a nossa visão sobre a homossexualidade, logo podem também influenciar o julgamento moral que delas fazemos.

E afinal de onde vem a mudança dos valores morais, ao longo do tempo, senão da evolução do conhecimento que temos do mundo?


Arquivado em:Ciência