sábado, abril 29, 2006

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De que falamos quando falamos de Globalização?



Há cerca de um ano estreou por aqui o documentário "Le Cauchemare de Darwin" (O Pesadelo de Darwin), realizado por Hubert Sauper. Vi o filme no Verão passado (em muito boa companhia, no simpaticíssimo "La Clef", ali para os lados de Censier-Daubenton), achei-o excelente e aconselho vivamente. Trata de uma questão muito específica, a pesca da Perca do Nilo no Lago Victória, particularmente na cidade de Mwanza, na Tanzânia. A Perca do Nilo terá sido introduzida no Lago Victória nos anos sessenta e causou um desastre ecológico devido à forte predação que esta espécie exerce sobre as espécies autóctones. Depois vem o desastre económico associado à pesca da Perca do Nilo, em que os beneficiários são o ocidente que come o grosso da produção a preços convidativos, e uma pequena minoria local nomeadamente alguns industriais da transformação do pescado. É também sugerido e não mostrado que há um tráfico de armas associado ao comércio do peixe (já lá volto). Mostra-se ainda que o ocidente, e em particular a União Europeia, através de "programas de apoio ao desenvolvimento" fomenta esta economia. O filme expõe toda uma miséria associada à economia da Perca do Nilo. Essa economia conduz ao abandono da agricultura pelos que procuram um emprego na pesca, inflaciona o preço dessa mesma Perca no mercado local apesar de ser um recurso abundante, e fomenta indirectamente a prostituição e a disseminação da SIDA.

O que é excelente neste documentário é que ele dá um exemplo concreto do que é a globalização. É fácil falar de globalização e dizer que o ocidente está a explorar o "terceiro mundo" (o que quer que isso seja). Mas sem saber o que isso significa em concretamente a discussão é estéril. Este filme mostra de maneira bem fundamentada um exemplo concreto do que é a globalização. E é isso mesmo, apenas um exemplo. É óbvio que a globalização não é só a Perca do Nilo em Mwanza (por exemplo quando estive no Congo era o Forrest), mas este é um exemplo que é dissecado em pormenor, e o filme vale por isso. Enfim, um verdadeiro documentário.

Houve, mais recentemente, uma polémica relativamente a este filme (pode ler-se na wikipedia um resumo dessa polémica). Basicamente François Garçon que se apresenta como historiador, mas que é também empresário na área da publicidade, contesta a honestidade do documentário em vários pontos. O único argumento forte de Garçon é o de que uma grande parte da Perca do Nilo (74%) não é exportada, e que 40% é consumida localmente. Do que li e das pesquisas que fiz não descobri de onde vêm esses números, não sei o que é que é medido (40% de quê?), mas Sauper mostra no filme que de facto há uma parte do peixe que é consumido localmente, restos do peixe transformado em fábrica consumidos em condições sub-humanas. Serão esses os 40% de que fala Garçon? Contudo a ideia de que a Perca é exportada massivamente para o Ocidentede é facto um ponto central do filme, se isso não é verdade então o filme é realmente enfraquecido. O restantes argumentos de Garçon são fracos. Acusa Sauper de mostrar apenas uma parte da realidade, ora como é óbvio esse é sempre o caso, há sempre uma outra parte muito maior que simplesmente não é o objecto do documentário. Garçon acusa Sauper de não ser imparcial, e cita números de instituições como o Banco Mundial, que a respeito de globalização estão longe de ser isentas. Finalmente Garçon critica a acusação implícita de haver um tráfico de armas associado ao comércio da Perca, quando nunca são exibidas provas. Por um lado é óbvio que os entrevistados (nomeadamente a tripulação dos aviões suspeitos de transportar as armas) nunca iriam assumir perante as câmeras o tráfico de armas, Sauper foi até onde podia. Por outro Sauper mostra simplesmente os indícios de que dispõe, e sugere o que pensa que acontece, depois é ao espectador que compete julgar se os indícios são convincentes ou não, Sauper deixa isso ao critério do espectador (eu, espectador, agradeço). Acho sempre muito bem, sem qualquer ironia, qualquer crítica minimamente honesta, como acho que é a de Garçon (discordo mas não me parece de todo desonesta), mas neste caso confesso que a minha opinião sobre o filme mudou muito pouco, fiquei a gostar apenas mais um bocadinho.

Finalmente há uma qualidade mais geral que também gostei muito. O filme foge ao maniqueísmo fácil do "Ocidente = Maus, África = Bons". A mensagem é a de que não há inocentes. Fica bem claro que há uma classe de políticos Africanos que trocam recursos por guerra, e que têm por isso uma fatia jeitosa no bolo da responsabilidade pela situação.

(O Libération pôs Hubert Sauper e o François Garçon frente a frente, infelizmente o link já não está disponível, a não ser para pagantes)


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