terça-feira, outubro 31, 2006

Ter ou não ter a Razão

Através deste post na Estação Central cheguei a este outro do João Miranda no Blasfémias. Neste post a primeira qualidade do João Miranda que salta à vista é a sua coerência formal. Escreve um post em que opõe a Razão à Religião, tomando partido por esta última contra a primeira, e fá-lo escrevendo um post que de racional não tem nada. É inegavelmente coerente.

João Miranda afirma que: a) "a Razão é míope e não incorpora efeitos de longo prazo". b) "Uma sociedade é o resultado de um longo dilema do prisioneiro iterado e colectivo". (Nota: é o próprio quem remete para a Wikipédia).
Ora a atitude racional a tomar seria verificar se uma e outra afirmações são conformes à realidade (desde já discordo completamente, em especial com a primeira afirmação). Para verificar se a realidade confere João Miranda poderia apoiar-se nalgum tipo de estudo, sociológico, antropológico ou outro. Coerentemente com a sua recusa da Razão João Miranda não o faz. Outra alternativa seria apresentar estas afirmações como uma simples opinião pessoal meramente especulativa, o que o leitor poderia relativizar como sendo apenas uma opinião como qualquer outra (logo possivelmente errada) ou então perguntar em que se baseia essa opinião. João Miranda também não o faz, e resolve o assunto assumindo a atitude religiosa de apresentar a sua tese como uma afirmação peremptória que simplesmente dispensa qualquer tipo de demonstração. Assim sendo pode depois generalizar para toda a sociedade humana aquilo que se passa nos casos particulares que são os referidos jogos.

João Miranda passa então para a defesa da Religião, sempre recusando o uso da Razão. Novamente sem necessidade de demonstrar se as suas afirmações conferem com a realidade ou não, defende que as regras de comportamento contra-intuitivas não são acessíveis à Razão, apenas à Religião. Não sei se João Miranda nunca ouviu falar da Teoria do Caos ou se considera a a Teoria da Relatividade perfeitamente intuitiva. São dois exemplos de descobertas científicas profundamente contra-intuitivas que só foram possíveis pelo uso da Razão. Ou será que a Razão permite descobertas científicas contra-intuitivas mas não permite ao Homem adoptar comportamentos contra-intuitivos? É sempre uma possibilidade...

Quanto aos outros dois pontos, não sei o que dizer, sem ter por demonstrado antes a existência de Deus, mas talvez o João Miranda possa começar por aí, e depois continuamos. A não ser que o que João Miranda quer dizer seja não que o jogo dos prisioneiros se prolonga lá da morte nem que Deus funciona como um juiz imparcial, mas simplesmente que a Religião permite aos crentes acreditar que esse é o caso. Não é de todo a mesma coisa, e necessita também, como tudo o resto, de uma demonstração de que é conforme à realidade.

Há ainda um aspecto muito importante: João Miranda confunde Deus e Religião, mas sobre isso já o JSA escreveu no deste post que referi ali em cima, e não vou aqui repetir, mas vale bem a pena ler.


E para finalizar: mesmo que a Religião tenha fundando todas as civilizações, e a Razão não tenha fundado nenhuma, isso permite rejeitar a Razão? Se fosse assim, o mesmo argumento poderia ter sido utilizado para rejeitar a Religião quando esta apareceu pela primeira vez. Também se poderia perguntar no sec. XIX se alguma civilização tinha sido bem sucedida utilizando a electricidade ou telefone, e assim recusar o uso da tecnologia. E os exemplos podem continuar, é só escolher algo que a dado momento foi uma inovação. Bem vistas as coisas o uso da Razão é ainda uma aquisição recente da humanidade, esperemos apenas que esteja em expansão.

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segunda-feira, outubro 30, 2006

Um filme inconveniente

Fui ver o filme "An Inconvenient Truh" e gostei bastante. Apesar de não gostar do título (já devem ter reparado que não gosto quando alguém afirma cabalmente uma verdade) aconselho vivamente, ainda para mais Al Gore "redime-se" logo no princípio do filme recorrendo a essa magnífica fonte de citações, Mark Twain :"The problem is not the things we don't know. It's what we know for sure... but just ain't so" (estou a citar de memória). E há até outros pormenores que poderia criticar, mas não vou por aí para não dar outra impressão que não a de que é um filme muito bem feito. Um documentário nos antípodas de Michael Moore.

Primeiro Al Gore fundamenta muito bem as suas teses sempre, apresentando sempre dados empíricos que sustentam aquilo que diz. Consegue sintetizar o essencial numa mensagem clara que me parece passar muito bem para a audiência: "O problema é o aumento do CO2 na atmosfera". A argumentação é muito sólida, ou melhor os dados que sustentam a argumentação são muito sólidos.

Segundo o filme é apresentado com uma enorme sobriedade, nem a exposição dos estudos se torna massuda a ponto de adormecer o espectador, nem o filme se apresenta com o useiro histerismo alarmista que acaba por informar muito pouco. Aliás consegue até em vários momentos aliar essa apresentação com algum humor (q.b.). O exemplo mais flagrante dessa sobriedade é quando se fala do furacão Katrina e de Nova Orleans. Onde Michael Moore teria martelado com o seu show-off propagandístico e manipulação emocional, Al Gore faz o que lhe compete: relembra-nos "apenas" que há uma ligação entre o aumento de furacões de grau 4 e 5, como o Katrina, e o aquecimento global, e o filme continua.

Terceiro o filme faz uma desconstrução sistemática e rigorosa dos argumentos dos cépticos, os que negam o aquecimento global, e desmonta convincentemente uma série de mitos. Depois de rebatidos esses argumentos, Al Gore trata de rebater o fatalismo. Numa atitude muito americana de "formador de recursos humanos" o filme termina numa nota afirmativa de We Can Do It! Não deixa de ser uma informação e uma mensagem muito importante: Já temos hoje à nossa disposição a tecnologia que nos permite resolver o problema. Com a economia de energia utilizando aparelhos de baixo consumo, reciclando, andando de bicicleta e transportes públicos, e toda uma série de coisas que podemos fazer hoje, é apresentada uma projecção que indica ser possível a médio prazo reduzir a quantidade de CO2 na atmosfera a níveis razoáveis.

Cinematograficamente há um aspecto interessante neste filme, muitas vezes a voz off que tão frequentemente é utilizada nos documentários é substituída por apresentações públicas de Al Gore, as conferências que dá um pouco por todo o lado. Pessoalmente acho que é uma opção que resulta muito bem e torna o documentário mais ligeiro, fácil de digerir, e logo mais eficaz, sem comprometer de modo algum o conteúdo.

O filme é voltado para os E.U.A. mas não só. Em cada ponto é focado em primeiro lugar o contexto americano, o que faz sentido, nem tanto pelo filme e Al Gore serem americanos, mas pelos E.U.A. serem o principal emissor de CO2 no planeta. Mas em cada ponto, sistematicamente, após ser focado o contexto americano passa-se para o contexto global, tornando assim o filme útil para todos fora dos E.U.A. E aí a Europa tem motivos para se preocupar, em vez de se rir e apontar o dedo aos americanos. É que a Europa aparece em segundo lugar na lista dos principais emissores em termos relativos (por habitante), e por muito que os E.U.A. estejam em primeiro, a Europa não se devia contentar por ser o segundo pior.

Apetece-me finalizar com uma nota sobre o perfil de Al Gore. É um daqueles políticos a quem se reconhece competência mas a quem acusam de lhe faltar o carisma, que é como quem diz que a sua imagem não se "vende" bem em termos mediáticos. Quando ainda se discutiam as primárias no Partido Democrata para saber quem se iria apresentar às eleições de 2000, os seus delatores diziam que Gore era um chato, como dizem os americanos Boring. Acho que ninguém de bom senso discordará que teria sido muito melhor presidente do que Bush. Faz-me lembrar Zapatero em Espanha, de quem se dizia mais ou menos a mesma coisa antes de ganhar as eleições. Hoje é, na minha opinião, o político mais interessante pelo menos na União Europeia. O líderes mais mediáticos não são necessariamente os melhores políticos.

Pode ser que este filme venha a ter repercussões. Coincidência ou talvez não Relatório Stern vem a agora a público, apresentado e apoiado pelo governo Britânico. O filme está ainda bem complementado com o site onde se podem encontrar referências ao principais estudos científicos em que se baseia, onde estão sugestões sobre o que podemos fazer como cidadãos para resolver o problema, e onde há um blog que se pode ler e comentar.

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sexta-feira, outubro 27, 2006

MORTS POUR RIEN


"Mortos para nada" foi o slogan que surgiu o ano passado nos dias imediatamente a seguir à morte de Zyed Benna e Bouna Traoré. Faz precisamente hoje um ano que morreram electrocutados numa central eléctrica em Clichy-sous-Bois. Zyed e Bouna esconderam-se na central eléctrica para fugirem à Polícia que iniciou uma perseguição ainda hoje não justificada. Foi este "acidente" que desencadeou o início dos tumultos das Banlieues de que toda a gente ouviu falar.

Passado um ano em Clichy-sous-Bois assinalou-se a data com uma marcha silenciosa, de mais de mil pessoas, em homenagem a Zyed e Bouna, num ambiente de recolhimento e apelo à calma. A foto ali em cima faz parte da exposição "Clichy sem Clichés", inserida iniciativas para relembrar os acontecimentos de há um ano. Esteve presente na marcha Muhittin Altun, a terceira vítima do acidente, e único sobrevivente dos três, o tal que foi miseravelmente tratado pela Polícia menos de 24h depois de ter sobrevivido por um triz à electrocussão.

Passado um ano ainda nem a Polícia nem o ministério que tutela a Polícia, o Ministério do Interior assumiram qualquer responsabilidade. Aliás nem sequer a versão avançada pelo primeiro-ministro e pelo ministro do interior, alegando que se tratava de delinquentes apanhados em flagrante delito, foi oficialmente desmentida. Essa versão foi rapidamente contrariada por todos os testemunhos, nunca voltou a ser usada nem pela Polícia nem pelo Governo, mas nunca houve uma retracção. Entretanto decorre um processo judicial, vários Polícias estão indiciados de não-assistência a pessoa em perigo, mas a Polícia e o Ministério do Interior continuam sem assumir qualquer responsabilidade pelas mortes de Zyed e Bouna.

Passado um ano há vários sinais de mobilização da sociedade civil das Banlieues que se estende à blogosfera. Descobri, sem grande esforço, dois exemplos, há com certeza mais. Um é o colectivo AC LE FEU, precisamente de Clichy-sous-Bois, que tem um blog. O AC LE FEU nasceu ainda durante os tumultos de há um ano. Nestes últimos meses (desde Março, mais precisamente) os membros do AC LE FEU, fizeram o seu "Tour de France", andaram por todas as Banlieues a discutir com os habitantes e sobretudo a ouvir as suas opiniões. Desta iniciativa resultou um Caderno de Reivindicações entregue quarta-feira passada no Parlamento. Ou outro exemplo é o Bondy Blog, é um blog em que jovens da vila de Bondy, no subúrbio norte de Paris, falam sobre tudo e mais alguma coisa da vida da Banlieue. Um aspecto interessante deste projecto é a participação do jornal suíço l'Hebdo, os sucessivos correspondentes daquele jornal que vão fazendo turnos nos subúrbios de Paris participam no blog dando assistência aos jovens bloggers na realização do projecto. Aliás a iniciativa partiu dos jornalistas, e já resultou na publicação de um livro, o que neste momento é a principal fonte de financiamento do projecto.

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Declaração de voto

Como escreve o meu amigo André Belo é um dever patriótico participar no concurso do Pior Português de Sempre. E digo mais, participar no outro concurso é que é anti-patriótico. Afinal para que serve eleger o melhor português? Para aumentar a nossa auto-estima? Para termos mais orgulho do nosso país? Mas isso tem alguma coisa a ver com a nossa identidade cultural? Se aumentássemos a auto-estima nacional teríamos que nos chamar outra coisa qualquer, não portugueses!

Vou mandar um e-mail com as minhas escolhas, que acho que deviam ira para a lista. Por exemplo o Nuno Álvares Pereira devia estar na lista por ter impedido que em 1383 Portugal se tornasse parte de Espanha. Se Portugal fizesse parte de Espanha as coisas poderiam até nem estar melhor mas ao menos poderíamos culpar os Espanhóis, assim temos de culpar-nos a nós mesmos, e a culpa disso é do santo contestável - perdão - condestável. Pela mesma razão, mas pior ainda, o D. João IV, por ter deixado que Portugal deixasse de ser parte de Espanha, em 1640, quando Portugal já fazia parte de Espanha. Ainda para mais o homem até nem queria, tiveram que convencê-lo a aceitar a coroa portuguesa, isso é ridículo, merece a nomeação para o Pior Português.

Mas a minha escolha vai para o Américo Thomaz. Não pela sua figura ridícula, ou pelos seus discursos patéticos, ou a sua vózinha irritante só superada por Salazar. Nem sequer por ser sistematicamente esquecido nos documentários sobre o 25 de Abril - dizem-nos sempre que Marcelo Caetano se rendeu no Largo do Carmo, mas nunca nos dizem onde estava o presidente Américo Thomaz. Também não é por ter sido um presidente da república fantoche durante 16 anos que voto nele, não. A razão do meu voto é o mau nome que esse sr. deu ao Belenenses! Volta não volta lá me perguntam como é que eu posso ser de esquerda e ser do Belém, ora essa confusão só acontece porque esse gajo calhou ser também pastel. Aliás é a única razão pela qual é ainda lembrado. É absolutamente imperdoável que tenha desonrado o meu clube dessa maneira, é o Pior Português de sempre.

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terça-feira, outubro 24, 2006

Uma pergunta ingénua...

Com a atribuição do prémio Nobel da Paz a Muhammad Yunus e ao Grameen Bank ocorreu-me uma pergunta: E porque não ser o estado a atribuir microcréditos? Porque não o microcrédito como alternativa ao rendimento mínimo garantido ou ao subsídio de desemprego? Não seria mais eficaz? Não seria uma maneira de contornar os efeitos perniciosos do subsídio a fundo perdido?

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segunda-feira, outubro 23, 2006

Isto está a aquecer...


Quando estamos a dias do primeiro aniversário dos tumultos das Banlieues aqui em França - começaram a 27 de Outubro - multiplicam-se os sinais de que os distúrbios se podem repetir este ano. Não foi só o autocarro que foi ontem (domingo) queimado em Grigny, sul de Paris. Têm sido vários os incidentes das últimas semanas, nomeadamente emboscadas a polícias.
São os próprios serviços de informação da polícia, os Renseignements Généraux, num relatório a que o Le Figaro teve acesso quem vem reconehcer que grande parte das causas que levaram aos tumultos o ano passado continuam reunidas. Não deixa de ser significativo que seja um jornal de direita a revelar este relatório, e que este venha da própria polícia, polícia essa que está sobre a tutela de Nicolas Sarkozy (embora esse continue a afirmar que não se vão repetir o que aconteceu o ano passado). Conclui-se daqui aquilo que não era difícil de adivinhar, depois de tudo o que aconteceu, do quanto se falou dos problemas das Banlieues, nada foi feito, nada mudou. Em particular este governo não fez nada para resolver a situação.
Pelo sim, pelo não o tal relatório já identificou antecipadamente os culpados por eventuais explosões de violência: os Média (como sempre, porque nos andam a lembrar que a situação continua na mesma), as férias escolares (claro que o vandalismo se deve apenas a miúdos desocupados, que no resto do tempo até vão à escola) ou o fim do Ramadão (não sei se perceberam a mensagem subliminar...).
Não tenho por certo que os tumultos se vão repetir, mas se se repetirem não fico de todo surpreendido. O que me parece certo é que estes acontecimentos são um sintoma de um problema que não está resolvido, mas que a classe política se limita a esperar que passe com o ar do tempo. E já agora falando disso o problema, na minha opinião, não é o falhanço da política de integração francesa. Essa política foi no passado até bastante bem sucedida, que o diga a comunidade portuguesa, isso apesar de terem sido cometidos alguns erros nomeadamente ao nível do urbanismo com a construção das Cités. Mais do que o problema de fundo há actualmente problemas circunstanciais, por vontade política, que estão na origem destes episódios de violência. O problema hoje é precisamente o retrocesso em anos mais recentes da política de integração que funcionava antes, criando um clima de hostilidade por parte do estado em relação aos imigrantes. Por outro lado, em relação com essa hostilidade, há hoje uma repressão policial dirigida especialmente às comunidades imigrantes, e descendentes de imigrantes - os jovens das Cités não passam um dia sem que lhes peçam a identificação, ou sejam mesmo revistados, sem outro motivo concreto que não o de serem banlieuesards.

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sábado, outubro 21, 2006

I didn't do it!

Em princípio teria sido a 22ª execução de uma pena de morte no Texas este ano, e 46ª nos Estados Unidos (para além dos 3300 condenados na "death row"). E se todas as condenações à morte são abjectas, a de Michael Johnson tem pormenores que a tornam especialmente chocante. Michael Johnson afirmou sempre a sua inocência, como fazem muitos, é certo, e não é isso que faz deles inocentes. Michael Johnson foi acusado de um homicídio cometido quando tinha 18 anos. Michael Johnson e um amigo, David Vest, terão roubado um carro e tentado atestar o depósito sem pagar, quando aparece o empregado da bomba de gasolina um dos dois atinge-o mortalmente. Michael Johnson negou desde o princípio a sua participação no crime, David Vest confessou inicialmente o homicídio. David Vest posteriormente fez um acordo em que reconhecia o roubo agravado e recebia 8 anos de prisão, a partir daí passa a acusar Michael Johnson de ser o autor do disparo. David Vest está hoje em liberdade. A condenação de Michael Johnson é baseada essencialmente no testemunho de David Vest. Michael Johnson, aos 29 anos, decidiu-se por uma última tomada de posição antes da execução, e encurtou a sua vida em algumas horas. Suicidou-se entre as 2h30 e as 2h45, na cela onde esperava a execução marcada para as 18h00, cortou a jugular e a veia do braço direito. Terá deixado uma última mensagem escrita com o seu próprio sangue nas paredes da cela: "I didn't do it".

Fontes: Le Monde e New York Times.

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quinta-feira, outubro 19, 2006

Princípios e Incertezas (parte IV)

Já que estamos a discutir se é possível ou não à Ciência atingir a Verdade, defina-se o que entendemos por isso. Atingir a Verdade para a Ciência seria conseguir uma descrição completa e definitiva de um determinado fenómeno natural. Pela minha parte se uma teoria conseguir explicar coerentemente todos os dados empíricos conhecidos sobre um determinado fenómeno, e conseguir prever de forma concreta e precisa todas as observações futuras, então essa teoria atingiu a Verdade. Mas isso não basta para que possamos afirmar que a Ciência atingiu a Verdade, é preciso que possamos demonstrar no presente que as observações que vão ser feitas no futuro estão previstas correctamente. Já deu para perceber que eu defendo a impossibilidade da Ciência atingir a Verdade, ou melhor, pode até já ter atingido em alguns campos mas não podemos sabê-lo, não podemos ter a certeza. É esta a posição que tenho defendido neste debate. Mas não se tome esta minha atitude por uma qualquer espécie de "nihilismo" científico, não acho que a Ciência possa atingir a Verdade mas acho que pode, e aliás já alcançou, uma aproximação muito boa.

A primeira razão que me ocorre apresentar em defesa da minha posição, é uma, por assim dizer, "razão" visceral. Na minha experiência de investigador estou habituado a trabalhar sempre com uma margem de erro. Em primeiro lugar, para realizarmos as nossas experiências temos sempre que manipular os objectos. Um exemplo que já utilizei é o da Biologia Celular. As células são transparentes, para observá-las temos que utilizar fixadores, soluções tampão, corantes, microscópios fluorescentes e tudo o mais. Estas manipulações alteram as células, e apesar de fazermos os controlos apropriados, cada técnica tem as suas limitações, e o que é mais importante, o erro associado. Em segundo lugar, quando fazemos uma observação temos que fazê-la uma determinado número de vezes para demonstrar que é reprodutível, esse número de vezes tem que ser significativo, supostamente tudo isto é sujeito a tratamento estatístico. Acontece que raríssimas vezes a observação feita, tal como é descrita, corresponde a 100% das observações feitas, há quase sempre aquele 1% de casos que não é como os outros 99%, só para chatear. Mas na verdade não chateia muito, porque é atribuído a um putativo erro experimental, varrido para baixo do tapete, e publicado a observação com um grau de confiança de 99%. O que isto quer dizer é que em cada 100 afirmações que fazemos há muito provavelmente uma que está errada, e vivemos bem com isso. Claro que depois há confirmações independentes, e a observação é coerente com o modelo que por sua vez é coerente com as outras observações feitas, e tudo bate certo. Pelo menos assim nos artigos de revisão, em que tudo nos é apresentado de uma forma muito mais bonita. Na minha opinião a margem de erro não se dilui nas outras observações pelo facto de serem coerentes, nem nas confirmações independentes, porque também essas têm uma margem de erro associado. A margem de erro está sempre lá mais ou menos constante, por isso parece-me que não se possa afirmar que a teoria seja Verdade. É provavelmente verdade, com um grau de confiança de 99%, o que não é a mesma coisa.

Passemos então à questão de Popper, e Santiago tem feito ao longo deste debate uma excelente crítica da epistemologia popperiana, que eu tenho vindo a defender para efeitos de argumentação, mas dou razão ao Santiago numa grande parte. Por exemplo a velha estória da cor dos cisnes, como escreve o Santiago é uma mau exemplo daquilo que pretende ilustrar, ou porque foi mal escolhido como exemplo ou porque não possível ilustrar melhor o argumento que se quer apresentar. Esse exemplo dos cisnes aparece no contexto histórico em que Popper se demarca dos neo-positivistas, Wittgenstein e o círculo de Viena, que afirmavam que uma observação repetida de um fenómeno permitia estabelecer a Verdade desse fenómeno, o raciocínio indutivo. É essa posição que Popper contraria com a sua ideia de falsificabilidade. E a meu ver, é este aspecto essencial que se deve reter da filosofia de Popper: a assimetria que existe entre a demonstração de uma tese e a sua refutação. Um resultado experimental pode liminarmente refutar uma teoria, e a refutação é definitiva. O mesmo resultado não pode demonstrar liminarmente e definitivamente uma teoria, porque se mantém sempre a possibilidade, ainda que teórica de uma outra experiência poder refutar a mesma tese. Este princípio, na minha opinião, permanece válido.

Finalmente um argumento a puxar para a Sociologia da Ciência. Quando perguntei "Como se estabelece um paradigma? Quem decide que uma teoria passa a paradigma?" para depois responder que é a comunidade científica enquanto entidade colectiva quem decide da aceitação de uma paradigma, foi com uma intenção. E aqui estou a adoptar um ponto de vista relativista (e espero desta vez estar a usar melhor esta palavra), é para dizer que a aceitação de um paradigma é não só um fenómeno complexo por envolver todo um grupo de indivíduos, mas sobretudo circunstancial, determinado por todos os factores "ambientais" do momento, é apenas a "verdade" do momento. É difícil imaginar que um paradigma seja definitivo.

Quando Santiago escreve "Mudar o "paradigma actual" ou falsificar a "hipótese vigente" já não tem nada a ver com anticorpos ou com o Sistema Imunitário: Só pode acontecer se toda a física actual estiver errada. Sabemos hoje tudo o que há para saber sobre o mecanismo de geração de diversidade se o que sabemos hoje em dia sobre a estrutura básica da matéria for correcto.", reafirmando a tal frase que começou este debate, aproxima-se perigosamente das Nuvens de Lord Kelvin. Parece-me antes do mais que não é necessário que a Física esteja errada para que o paradigma actual sobre a geração de diversidade dos anticorpos seja substituído, basta que a mudança de paradigma seja por exemplo ao nível da Biologia Molecular. E se tal acontecesse, uma mudança drástica de paradigma na Física ou na Biologia Molecular, não teria nada de catastrófico. Aconteceu à Física newtoniana, e afinal a Física newtoniana continua a ser suficiente para mandar uma nave espacial à Lua e voltar, continua a ser ainda hoje uma aproximação bastante boa.

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Nota 1 - O André Goios critica a minha leitura do princípio da incerteza de Heisenberg. Sem contestar os argumentos do André, o que entendo por verdade não se limita apenas às propriedades intrínsecas, mas a uma descripção completa do fenómeno. No caso do electrão a velocidade e posição fazem parte dessa descrição, além do que a função de onda é apenas uma descrição parcial das propriedades do electrão. Assim sendo, como o princípio da incerteza ainda não foi refutado, o ponto principal do meu argumento continua válido: a observação altera a natureza do objecto, o que torna a Verdade inacessível.

Nota 2 - Entretanto o Santiago já escreveu uma resposta ao meu post anterior. Se calhar nem valia a pena dizê-lo, mas há muitas coisas em que estou de acordo com o Santiago, se ficam pontos aos quais não respondo é provavelmente essa a razão.

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Os Barbizons que há por aí...

Há aqui em Paris algumas salas de espectáculos abandonadas que foram tomadas por cidadãos empenhados que as dinamizaram, criaram programações alternativas consistentes, levaram a cabo iniciativas culturais diversas. Em suma, fizeram serviço público na base do voluntariado.
Há aqui em França um ministro do interior com uma ambição política desmedida (Nicolas Sarkozy, já devem ter ouvido falar) que não hesita em instrumentalizar a insegurança e as polícias para fins populistas, o resultado é um aumento da criminalidade desde de que assumiu o ministério - mas isso é apenas um pormenor.
Há aqui (e em muitos sítios) especuladores imobiliários com o olho nessas salas de espectáculos, e tudo o que seja imóvel. Esse ministro não hesita em utilizar as forças da ordem para "repor a legalidade" - do ponto de vista dos agentes imobiliários - em tudo o que seja "squat", e parece querer fazê-lo com aparato, de preferência mediático, antes das eleições presidenciais do ano que vem às quais será candidato.
Há aqui em França também um a série de leis que combatem a existência de imóveis devolutos, e protegem os ocupantes seja para os espaços culturais ou para habitação, e tentam regular o mercado imobiliário, mas o mesmo ministro faz por ignorar essa parte da lei.
Há no 13éme arrondissement um desses espaços culturais, um antigo cinema, o Barbizon que foi tomado em mãos pelos "Amigos de Tolbiac", e que recentemente teve o apoio da Mairie de Paris - essa, sim, com provas dadas no que toca à política cultural. O Barbizon foi ocupado pela polícia há dois dias, e foi murado.
Há um desses "Amigos de Tolbiac", o André Goios, que é também meu amigo, e começou agora um blogue, em que nos fala da história do Barbizon, e de outros Barbizons que há por aqui e por aí.

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quarta-feira, outubro 18, 2006

Princípios e Incertezas: A Resposta (parte III)

Aqui está mais um post do Santiago, na continuação deste nosso debate. Este conclui, por assim dizer, o que começou nos dois posts anteriores (este e este), mas o debate continua (pelo menos na parte que me toca vai haver mais um post, mas não me parece que fique por aí). Já agora uma nota: este post do Santiago foi escrito antes do meu anterior ser publicado.

É importante definir bem "Ciência" para poder solucionar o "problema da demarcação". O objectivo é ter uma definição suficientemente abrangente para incluir todos os ramos do conhecimento científico, deixando de fora tudo o que é não-ciência e/ou é pseudo-ciência.

Não chega o "teste da falsificabilidade" para demarcar os territórios. Não deve ser preciso voltar a falar de hamburgueres para explicar que há muita coisa falsificável (a parapsicologia de que falo mais abaixo é outro exemplo) que não é ciência. Popper ainda errou mais ao sugerir que a ciência progride por falsificação das "teorias" (ou hipóteses) em vigor (ainda Wolpert: "This view completely ignores the nature of discovery in science and fails to explain how one knows that a falsification is correct."). Como tentei mostrar ao contar a história da descoberta do mecanismo de diversificação dos anticorpos, o progresso científico às vezes não tem nada a ver com a "falsificação" de hipóteses.

Creio que Popper falhou porque tinha poucos conhecimentos de biologia. Dar como exemplo a hipótese "todos os cisnes são brancos" é manifestamente infeliz embora revelador dessa séria limitação nos seus conhecimentos. Um grande número de mutações no genoma do cisne provocam alterações na côr das penas (e algumas até ausência delas). Essas alterações podem ou não fixar-se na população, mas nenhum estudioso da "matéria viva" teria falado assim ou dado esse exemplo. Quando Popper publicou a sua ""Logik der Forschung" já se sabia biologia bastante para perceber que o exemplo é absurdo. Só alguém com um deficiente conhecimento dos mecanismos subjacentes à evolução das espécies (e que não percebesse as implicações do "descent with modifications") é que apresentaria um exemplo tão mau. Se Popper soubesse um bocadinho mais de Ciência, de Biologia em particular, não teria obrigado tanta gente (igualmente ignorante em Ciências Biológicas) a percorrer o mundo catalogando cisnes...

Os Cientistas Sociais e Humanos gostam de chamar científica a toda a disciplina que 1) Tenha um objecto de estudo bem definido, e 2) Acumule conhecimento seguindo o "método científico". É claro que são suficientemente humanos para definir "Ciência" de uma forma que inclua o que eles próprios estudam, mas a definição escolhida é claramente insatisfatória. No fundo apenas transfere o "problema" para a definição de "método científico", que é coisa bem mais difícil, talvez impossível, de fazer. Creio que a citação de Feyerabend que o Zèd transcreveu aqui argumenta justamente este ponto, e bem. Não existe um "método científico" porque todos os caminhos são bons se nos ajudarem a compreender melhor o mundo que nos rodeia e no qual vivemos.

Há outra razão, mais importante, para rejeitar a definição favorita dos CSH: É uma definição que também não nos resolve o "problema da demarcação": A Parapsicologia tem um objecto de estudo bem definido ("study of communication or interaction between organisms and their environment that do not appear to rely on the established sensorimotor channels", na deliciosa definição do European Journal of Parapsychology), e usa métodos que só podem ser descritos como científicos (enuncia hipóteses e testa-as experimentalmente). E no entanto a parapsicologia não é ciência.

Sempre preferi, portanto, definir ciência como a actividade que procura explicar o mundo natural (os "fenómenos" naturais, que são os únicos que indubitavelmente existem) por "causas naturais" (que são também as únicas que indubitavelmente existem). Esta definição resolve-nos o "problema da demarcação" sem nos obrigar a entrar em grandes filosofias (serôdias na maior parte dos casos) sobre o que é o "método" ou quantas categorias tem o espírito ou qualquer outro tipo de patuás desinteressantes. Sem excluir a existência de "causas sobre-naturais" (ou até de "fenómenos sobre-naturais"), os cientistas devem-se limitar ao que é objectivo (ie: respeitar sempre o "princípio da objectividade" de que falava Monod). Tudo o resto, a parapsicologia, a magia, a teologia, a alma, etc etc etc é tal e qual o que o outro dizia: "C'est magnifique, mais ce n'est pas la guerre"...

O mundo natural (a matéria) é constituída por átomos e por isso, da definição que dei acima, seguem-se duas consequências necessárias (logicamente necessárias, em meu entender): Em primeiro lugar, só merecem a designação de científicas aquelas actividades que se reduzem ao estudo de interacções entre átomos (ou moléculas); e em segundo lugar, quando encontramos a "explicação molecular" para um dado fenómeno encontramos também a "verdade científica" para ele.

Os argumentos seguintes valem sobretudo para as "Ciências Biológicas" (com as quais estou familiarizado), que se organizam em moléculas, células, organismos e populações. Para níveis organizativos "inferiores" (sub-atómicos) ou "superiores" (supra-populacionais) o vocabulário teria que ser revisto, mas não creio que o argumento fosse substancialmente diferente a menos que estivéssemos completamente errados acerca da constituição atómica da matéria.

Os genes são constituídos por ADN, que "codifica" (cifra seria mais correcto...) a sequência de amino-ácidos numa molécula de proteína. Linfócitos diferentes produzem anticorpos diferentes porque a sequência das bases de DNA que constituem os genes dos seus anticorpos é diferente. Quando conseguimos explicar molecularmente o que se passava em cada uma das células B de um indivíduo, aprendemos a " verdade" sobre o mecanismo de geração da diversidade dos anticorpos. Mudar o "paradigma actual" ou falsificar a "hipótese vigente" já não tem nada a ver com anticorpos ou com o Sistema Imunitário: Só pode acontecer se toda a física actual estiver errada. Sabemos hoje tudo o que há para saber sobre o mecanismo de geração de diversidade se o que sabemos hoje em dia sobre a estrutura básica da matéria for correcto. Esta conclusão permite-me repetir a frase que esteve na origem deste belo debate (de que eu tanto gostei): "o mecanismo de geração de diversidade dos anticorpos [...] nunca mais se alterará.

Se a matéria não for constituída por átomos, se os átomos não tiverem tantos electrões e orbitais livres como pensamos, se afinal andamos enganados desde os tempos de Rutherford (que disse: "All science is either physics or stamp collecting", uma das mais profundas e correctas definições de "Ciência" que é possível dar...), então vamos ter de recomeçar tudo desde o princípio. Só nos resta ter esperança de conseguir vir a perceber porque é que os anticorpos são tão diversos no caso de a matéria, no fim de contas, ser constituída de outra forma.

Entretanto sugiro que deixemos os cisnes em paz...


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Nota 1 Quando digo que quero excluir tudo o que é não-ciência e/ou pseudo-ciência, é óbvio que não me importo de incluir a "má-ciência" na minha definição. A "fusão a frio" ou a bizarra história dos "Raios-N" são exemplos de "ciência" que não passou a ser pseudo- só por ter sido má-...

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segunda-feira, outubro 16, 2006

Princípios e Incertezas (parte III)

Vou finalmente responder ao post que aqui escreveu o Santiago, no debate que temos mantido sobre se a Ciência pode ou não alcançar a verdade. Nesse post, e num outro o Santiago usou como exemplo a Imunologia, e a descoberta da estrutura do anti-corpo para ilustrar o processo científico. Há alguns aspectos da sua argumentação que quero comentar.

Pegando na explicação instrutiva. Segundo esta explicação os anti-corpos teriam capacidade de se adaptar aos anti-génios, o que com as descobertas da Biologia Molecular se tornou simplesmente inconsistente. O Santiago argumenta que isto constitui uma refutação da visão popperiana da falsificabilidade dado que a explicação instrutiva não foi refutada experimentalmente, tornou-se apenas incoerente com a visão global da Biologia e da Genética que entretanto emergiu. Em sentido estrito, e sendo intelectualmente rigoroso o Santiago tem toda a razão, a falta de um teste empírico que falsifique a teoria é contraditória com a visão de Popper (um ponto a favor de Khun). No entanto, tomando a visão de Popper em sentido lato, vendo o princípio da falsificação como uma abstracção (e uma simplificação), como sendo apenas um modelo de trabalho, uma forma de sistematização lógica do funcionamento da Ciência, pode argumentar-se que a Biologia Molecular (o tal novo paradigma) é a refutação da explicação instrutiva. Mesmo que esta não tenha sido directamente testada a Biologia Molecular resulta de uma serie de resultados experimentais que são inconsistentes com a explicação instrutiva, digamos que é uma falsificação indirecta.

Depois o Santiago escreve sobre o modo como avança a Ciência, e aqui não vou defender Popper. Chega de simplificações abusivas e de abstracções. Concordo com o Santiago quando diz que "é raríssimo uma experiência ser feita para provar que a teoria vigente está errada", e acrescento que a intenção com que se faz uma experiência é completamente irrelevante. Normalmente a experiência faz-se para testar se um dado paradigma se aplica a uma situação nova, que ainda não tenha sido testada, seja qual for o paradigma, ou por vezes (não raras) nem sequer há um paradigma a priori. Isto é apenas uma maneira diferente de dizer o que já disse o Santiago.

Há, no entanto, um ponto onde eu não concordo:

"... o progresso científico não é apenas (ou sequer fundamentalmente) empírico. A Ciência não progride pela "experiência" (coisa essencial em Popper). Progride pela razão..."

A Ciência sem resultados empíricos é apenas especulação. Ou seja, podem construir-se teorias, mas que não se constiuirão em paradigmas se não forem corroborados por observações experimentais, se não forem testados empiricamente. Tal como acumular dados empíricos sem que se construa a partir daí um modelo explicativo não é propriamente Ciência, é stamp collection como diria Rutherford. E isto leva-me a um outro ponto que me parece importante e que o Santiago não abordou: Como se constrói um paradigma? Quem decide que uma teoria se transforma em paradigma?

Relembro a citação de Feyerabend, que não foi obviamente escolhida ao acaso. O que determina a aceitação de uma paradigma é essa entidade difusa e indefinida, como todas as entidades colectivas, que é a comunidade científica. Não há uma regra escrita, nem sequer um código de conduta tácito, sobre o que faz com que uma teoria seja aceite. O que estabelece a aceitação ou refutação de uma teoria é simplesmente aquilo que o conjunto dos cientistas de uma determinada área, num dado momento, concordam em considerar como correcto, ou melhor ainda, como aceitável. Está sujeito ao contexto específico de cada domínio científico, ao contexto histórico, a modas e a toda uma série de circunstâncias que influenciam essa decisão colectiva. A visão de Feyerabend está muito mais de acordo com esta constatação, é uma visão muito mais realista de como a Ciência se faz na realidade. Não há uma regra universal, não há sequer um padrão comum que se repita ao longo da História da Ciência. E vou voltar a este ponto quando voltarmos à questão central deste debate, a verdade científica.

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domingo, outubro 15, 2006

Ali Farka Touré e a Harmonia da música africana

Muda a música ali na Grafonola, na coluna da direita. Uma pequena homenagem a um grande músico falecido em Março deste ano. Toca agora o tema "Fara" do último álbum de Ali Farka Touré, "Savane". Originário do Mali, Ali Farka Touré, foi um gigante da música do africana, dos poucos que conseguiu algum sucesso e reconhecimento no Ocidente.
A escolha não é inocente, veio-me à ideia na sequência do debate sobre o que escrevi sobre o Chico Buarque, em resposta escreveu Le Fante que a harmonia era europeia, na música africana (excepto a árabe) era apenas rudimentar ou senão mesmo inexistente. Espero que este tema de Ali Farka Touré demonstre o contrário. Se repararem bem a melodia não existe, o ritmo - coisa rara na música africana - não é de todo predominante, está lá subliminarmente, bem discreto para deixar todo o palco à harmonia, que é tudo o que resta. Fara é (quase) só harmonia, mas como bem se pode reconhecer não deixa de ser profundamente africana.



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quinta-feira, outubro 12, 2006

Princípios e Incertezas: A Resposta de um Físico

O meu amigo André Goios deixou ali em baixo um comentário a contestar a interpretação que faço do princípio da incerteza de Heisenberg. É um contributo importante para o debate que merece um post, e ainda para mais o André é Físico, percebe mais disto do que eu.

Para mim a questão é que a verdade não está na posição e velocidade, pois não são propriedades intrínsecas da matéria. São como que estatísticas efectuadas a partir da verdadeira essência de uma partícula que é a "função de onda", uma distribuição que está espalhada pelo espaço, tal como o campo eléctrico ou gravítico. Tanto a posição como a velocidade são médias calculadas a partir da função de onda.

Medir a posição de uma partícula é como forçar um volume de água a estar num copo A ou B, acontece que no caso da partícula a medição força toda a água a ir para um dos copos - é o colapso da função de onda.

Ou seja, se acreditarmos na MQ [Mecânica Quantica] e na função de onda como propriedade intrínseca da partícula (e há fortes razões, incluindo experimentais, para acreditar nela), a medição da posição ou da velocidade são formas muito toscas de conhecermos a partícula.

Ora, sem ter alguma ideia sobre como realizar isso, parece-me conceptualmente concebível que possa vir a existir uma forma de medir a tal função de onda. De facto, num átomo de hidrogénio por exemplo há formas de calcular a função de onda do electrão, isso não é uma forma de o conhecer?

E se calhar não estamos tão longe das ciências sociais, o querermos conhecer o objecto de acordo com as nossas estruturas perceptivas (ou aparelhos de medida) alteram o próprio objecto sem que fundamentalmente ele deixe de ter propriedades intrínsecas num determinado instante.

Falando de teoria do caos e sistemas dinâmicos ainda estamos pior... O problema não é a "verdade" estar num patamar diferente (corresponder a variáveis que não são observáveis) mas sim que o sistema é susceptível às mínimas alterações. O sistema pode ser descrito por equações conhecidas, o problema está em determinar com precisão as condições iniciais de que ele parte. Mas mais uma vez, teoricamente isso é possível, basta melhorar infinitamente os aparelhos de medição.

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quarta-feira, outubro 11, 2006

Manobra de diversão

A tese é a seguinte: os factos, operações e resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum; não há elementos que se verifiquem em todas as investigações científicas e só nelas. Os desenvolvimentos concretos (com a derrocada das cosmologias do estado estacionário e a descoberta do ADN) têm traços distintivos próprios e muitas vezes é-nos possível explicar o porquê e o como do seu sucesso. Mas nem todas as descobertas podem ser descritas da mesma maneira, e os modos de proceder que resultaram podem converter-se em agentes de ruína quando os impomos ao futuro.
Paul Feyerabend
in Contra o Método - Esboço de uma Teoria Anarquista do Conhecimento


Assim resume Feyerabend o essencial do seu pensamento epistemológico nas primeiras linhas da Introdução à edição chinesa da sua obra nuclear "Contra o Método" (editada em português pela Relógio de Água). Eu aproveito, enquanto preparo uma resposta ao Santiago, para lançar um pouco de confusão no debate. Na minha opinião Feyerabend foi dos epistemologistas do sec. XX o que melhor percebeu como funciona realmente a Ciência. Tanto a visão de Popper, como a de Khun são demasiado redutoras. Caiem no mesmo erro, nessa procura de um "Santo Graal", o elemento que define a Ciência; a "Falsificação" com Popper, a "Ruptura de Paradigmas" com Kuhn. Com a visão de Feyerabend, que nos diz pura e simplesmente que o Método Científico não existe, e que não há uma só mas uma infinidade de maneiras diferentes de fazer Ciência, a sistematização, e logo o estudo da História da Ciência tornam-se mais difíceis. Mas de que serve uma descrição que permita a sistematização se ela não corresponde à realidade?

Sem perder de vista o tema do debate (a cor das penas dos Cisnes), serve esta referência a Feyerabend apenas para lembrar que se o progresso da Ciência se faz num terreno assim tão movediço, volátil, é difícil imaginar que a procura da verdade pela Ciência seja mais do que uma boa aproxiamação.

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Post-scriptum

Depois de escrever sobre o princípio da incerteza de Heisenberg apetece-me acrescentar uma nota não sei se mais científica ou mais política.
Não deixa de ser de uma enorme ironia que Heisenberg, o cientísta que estableceu o princípio da incerteza, que demonstrou ser impossível ao espírito humano aceder completamente à verdade, fosse um notório Nazi (foi director do programa nuclear alemão durante a Segunda Guerra com vista a construir a bomba atómica). Mas isso é apenas metade da ironia. A outra metade é que Einstein, verdadeiro pai do relativismo, e notório pelas suas posições políticas tolerantes e pacifistas, tenha tentado até ao fim da sua vida contrariar a ideia de que a verdade é inacessível. Vem daí a sua célebre frase "Deus não joga aos dados!".

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segunda-feira, outubro 09, 2006

Princípios e Incertezas: A Resposta (parte II)

Continuando o debate, aqui no Agreste Avena, sobre a possiblidade de a Ciência encontrar a verdade, aqui está um post do Santiago, na continuação do anterior, em resposta a este e este que escrevi, e estão ali em baixo

Contei a história daquela maneira particular (e a história podia ter sido contada de outra maneira...) com segundas intenções, obviamente. Acho que contar a história assim torna claro um ponto que quero frisar neste debate: O progresso científico não ocorre apenas por "falsificação" das "teorias" vigentes. Às vezes as teorias "mudam" por outras razões.

Tal como vejo a situação, a explicação "instrutiva" (pós-Landsteiner) morreu sózinha... passou a ser ignorada porque não dava as resposta que a Biologia em geral passou a exigir quando se tornou claro que tudo funcionava segundo o esquema DNA makes RNA makes Protein. O instrucionismo era simplesmete insatisfatório à luz da nova "maneira" de olhar para o funcionamento das células vivas.

Quero ser muito claro aqui: A Teoria Instrutiva foi abandonada sem ter sido alguma vez falsificada! A falsificação veio depois, quando foi possível sequenciar proteínas e ácidos nucleicos, quando se solucionou a estrutura cristalina dos anticorpos e, hei-de me repetir neste ponto, quando ficámos a conhecer em todo o detalhe molecular a maneira como as células B produzem anticorpos. Não foi abandonada por se ter demonstrado que estava errada.

O "paradigma" mudou de repente (Thomas Kuhn gostaria de ter lido isto, estou certo). O mais engraçado é que, no novo paradigma, a questão original de Landsteiner (como é que poderão existir genes que nunca foram seleccionados) deixou de fazer sentido, sem ter tido resposta. Viu-se que era uma questão "insensata" e que nunca devia ter sido colocada dessa forma: A selecção natural favorece indivíduos capazes de produzir um número suficientemente grande de anticorpos diferentes, de forma a que, por via das reacções cruzadas que necessariamente ocorrem, qualquer antigénio possa ser "combatido". Não nos devemos esquecer que esta "mudança de paradigma" só pôde ter lugar porque o "novo paradigma" (selectivo) mantinha a conformidade com o "paradigma superior" (o de Darwin).

O argumento é que, apesar do "teste da falsificabilidade" ser muito importante, na prática o progresso científico (o progresso das ideias científicas) não o segue à risca. E não o segue também por outras razões: É raríssimo uma experiência ser feita para provar que a teoria vigente está errada. As experiências são feitas, na esmagadora maioria dos casos, por uma de duas razões: Ou por curiosidade "genuína" acerca do que vai acontecer (isto é, sem uma real expectativa sobre qual o resultado que vai ter), nos casos em que qualquer resultado se conformaria com a teoria, ou trata de informação necessária para perceber que classe de teorias pode vir a ser correcta; ou para confirmar a teoria (o "paradigma") vigente. Foi este último o caso de Gus Nossal quando demonstrou que podia eliminar a especificidade para um dado antigénio suprimindo apenas um número reduzido de clones (os que eram específicos para o antigénio). De uma penada matou a "instrução" e mostrou que a "selecção clonal" era um fenómeno verdadeiro.

Ou seja: Na realidade as experiências são (quase) sempre feitas à luz de uma "paradigma" existente, em conformidade com ele, e as "perguntas" que levam a elas só são feitas porque o "paradigma" (a "teoria") lhes dá sentido...

Nada disto é para defender tudo o resto que Kuhn disse (ou que foi atribuído a Kuhn pelos seus seguidores...), mas serve para frisar que o progresso científico não é apenas (ou sequer fundamentalmente) empírico. A Ciência não progride pela "experiência" (coisa essencial em Popper). Progride pela "razão"...

Na última parte desta contribuição para o debate (só daqui a uma semana, hélas) vou finalmente abordar a questão da "verdade científica". Repito que acho que há uma altura em que chegamos "ao fim da linha" e o "paradigma" não pode mais mudar, porque mudá-lo implicaria mudar tudo o que sabemos sobre o funcionamento da matéria viva. Se o mecanismo que hoje em dia achamos ser "a verdade" para descrever a "Geração da Diversidade" dos anticorpos estiver errado, então toda a Biologia tem de estar errada. Estamos errados acerca do papel do DNA, do RNA, da regulação da expressão genética, da síntese proteica, das proteínas, etc etc etc...

Três notas:

1. Não me esqueci do "problema dos cisnes": O mecanismo que conhecemos em ratinhos não é igual ao que opera noutras espécies. Por exemplo, nos camelos há umas variações curiosas; nas galinhas - e talvez também nos cisnes - o mecanismo de G.O.D. é totalmente distinto; nas ovelhas é ainda diferente de todos estes. É também possível, em tese, que não seja exactamente, exactamente, exactamente, exactamente igual em todos os ratinhos que existem, existiram e existirão. O que isto nos diz, acho eu, é que ainda há coisas que não sabemos e por isso ainda vale a pena ser cientista. Embora não me pareça provável, admito que alguém, algum dia, tropece num ratinho que diversifica os seus anticorpos como as galinhas (é tudo por gene-conversion). Admito até (já disse que sou agnóstico, não disse?) que um dia apareça uma galinha que rearrange gene fragments - V, D e J - e tenha N-sequences e tudo. O que só significa, estou-me a repetir, que não vou deixar de ter emprego...

2. No meu texto anterior cometi uma omissão quase tão grave como a da Academia Sueca! Vale a pena recordar que David Talmage teve também uma contribuição significativa para toda esta história. Forsdyke cita-o aqui desta forma: " . . . it is tempting to consider that one of the multiplying units in the antibody response is the cell itself. According to this hypothesis, only those cells are selected for multiplication whose synthesized product has affinity for the antigen injected. This would have the disadvantage of requiring a different species of cell for each species of protein produced, but would not increase the total amount of configurational information required on the hereditary process."
Foi mais um daqueles que acabaram esquecidos nas "brumas da memória"... nem a Wikipedia ajuda muito... os amigos dele, provavelmente, are no more...

3. Uma das razões que ditou o abandono das Teorias Instrutivas foi a ideia que as proteínas têm uma estruta tri-dimensional fixa, determinada pela sua sequência de amino-ácidos. A descoberta da alosteria (Changeux e Monod) e a resolução dos cristais desse "enzima honorário" que é a Hemoglobina (Perutz) mostrou que afinal até há substrato biológico para esse tipo de ideias. Se Changeux tivesse nascido mais cedo ou Perutz fosse mais despachado, acho que Burnet teria acabado os seus dias na maior das obscuridades...

Santiago

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O affaire Dreyfus

Faz hoje 147 anos que nasceu Alfred Dreyfus, militar francês que se viu involuntariamente no centro de um escândalo político que abalou a III República francesa. Numa altura em que muito se gosta de fazer julgamentos na praça pública, de preferência às oito da noite em directo para o telejornal, e baseado em evidências que "toda a gente conhece" mas que ninguém mostra, convém relembrar o Affaire Dreyfus. A história é simples de contar. Em 1894, uma espia, a coberto de um disfarce de empregada da limpeza, na embaixada alemã em Paris encontra num caixote do lixo uma carta não assinada revelando segredos militares franceses ao inimigo alemão. Trata-se obviamente de alguém dentro do exército francês, e interessa descobrir o traidor. Dreyfus tem tudo contra ele, é alsaciano (família poderia até ter optado pela cidadania alemã 1872 quando a Alemanha anexou a Alsácia e a Lorena, mas preferiu a nacionalidade francesa), fala alemão fluentemente, é arrogante e antipático, e, detalhe não de somenos importância, é judeu. Um pequeno pormenor: não havia a mínima evidência tangível que ligasse Dreyfus à carta denunciando os segredos militares. Dreyfus é condenado, sem sequer conhecer a totalidade da sua acusação, e é enviado para a Île du Diable na Guiana Francesa, o que constitui de facto uma quase condenação à morte. O irmão de Alfred, Mathieu Dreyfus começa então uma campanha na tentativa de inocentar o irmão. Consegue ganhar a simpatia de algumas personalidades no meio político e jornalístico, e ganha dimensão a campanha para que seja feita justiça a Alfred Dreyfus. Essa campanha ganha enormes proporções e agita profundamente o sistema político. Fica célebre nomeadamente o "J'accuse" de Émile Zola. Não faltam também os pormenores dignos de uma super-produção hollywoodesca, por exemplo um declarado anti-semita, Marie-Georges Picquart, acaba por ter uma enorme importância no inocentar de Dreyfus. A história tem um final feliz, Dreyfus acaba por ser reabilitado e o verdadeiro espião é identificado. Vendo bem as coisa, se hoje sabemos quem foi Dreyfus é porque a história teve um final feliz, caso contrário teria morrido na Ilha do Diabo e caído no esquecimento. Pensando bem podem ter acontecido muitas histórias sem um final feliz, e que por isso mesmo nunca ouvimos falar delas.
P.S. - Toda a história do Affaire Dreyfus na Wikipedia.

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sexta-feira, outubro 06, 2006

Um outro debate sobre o mesmo tema

Este debate com o Santiago, faz-me lembrar um outro mais ou menos sobre o mesmo tema, que teve lugar nas páginas da revista Bioessays, em 1999 e 2000. O debate começou por ser se sobre a compatibilidade das teorias de Popper com a Genética e Biologia Molecular modernas, e acabou por tocar a utilidade da espistemologia de Popper (e da Filosofia em geral) para o investigador, leia-se o investigador que está na bancada, a fazer experiências. É sempre uma boa pergunta "A Filosofia serve-nos para alguma coisa?".
Tudo começou com uma carta de um biólgo, Robin Holliday, ao editor com o sugestivo título:"The incompatibility of Popper's philosophy of science with genetics and molecular biology". Sucederam-se respostas e contra-respostas, tudo de investigadores em biologia. É curioso que o assunto entre os investigadores não é (não parece ser) de todo consensual. De toda a discussão destaco uma citação de Lewis Wolpert, no seu estilo muito particular (e contra mim falo...) que fica aqui como teaser:

"Philosophers of science this century have contributed nothing that helps us understand the scientific process and why it is so successful. Scientists regard their activity with a puzzled detachment."
Lewis Wolpert

Ficam aqui, por ordem cronológica, as ditas as cartas que consituiram o debate (formato PDF): Robin Holliday, Jonathan Bard, Aubrey D.N.J. de Grey, Nick Smith e Mike Mogie, Lewis Wolpert, George K. Nagy e Erasmus Schneider, John R. S. Fincham e Jonathan Gallant.

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quinta-feira, outubro 05, 2006

Princípios e Incertezas: A Resposta (parte I)

O Santiago deixou ali em baixo um comentário ao meu post anterior que eu acho que merece passar da caixa de comentários para a página principal. Fica já com a promessa de uma segunda parte em breve. E já agora é uma estreia, o primeiro post convidado aqui no Agreste Avena.

Por alturas dos anos 30 ou 40 Landsteiner (que ganhou um Nobel pelo estudo dos grupos sanguíneos) reparou que os coelhos que ele usava nas suas experiências conseguiam fazer anticorpos específicos para qualquer antigénio. Ele percebeu isso quando imunizou coelhos com antigénios que não existem na natureza: Contendo ligações triplas de Carbono e Oxigénio. Estas são ligações de alta energia, muito instáveis, e só existem como produto de síntese laboratorial.

A especificidade desses anticorpos era altíssima. Tinham elevada afinidade para essas triplas ligações C - O e nenhuma ou quase nenhuma para quaisquer outras estruturas moleculares.

O problema era explicar este fenómeno à luz do paradigma Darwinista vigente: O antigénio em causa (C - tripla ligação - O) não existe na natureza e era inconcebível que o Oryctolagus cuniculus tivesse conservado um gene codificando um anticorpo com uma especificidade que nunca jogou um papel na evolução dessa espécie: Não existe, nem nunca existiu, um único micro-organismo, potencialmente patogénico para o coelho, que tenha esse antigénio para servir de alvo a uma resposta imunitária...

Criou-se então um paradigma instructivo: Os anticorpos não têm uma estrutura fixa, mas "adaptam-se" ao antigénio depois de ele aparecer, tornando-se por isso específicos a posteriori, por assim dizer. A noção era que o antigénio "instrui", "ensina", o anticorpo a ser específico para si próprio. Várias teorias foram propostas para explicar em detalhe a produção de anticorpos a partir da "forma" providenciada pelo antigénio.

Estes modelos no entanto explicavam mal a contínua produção de grandes quantidades de anticorpo mesmo depois de o antigénio ter sido todo eliminado para além de outras observações que se iam acumulando. Por outro lado, quando nos anos 50 a Biologia se tornou verdadeiramentte molecular, estas Teorias Instructivas revelaram-se incompatíveis com outros princípios entretanto consensualmente aceites. Em particular a ideia que "um gene = uma proteína" e o postulado (de Crick) que uma dada sequência de amino-ácidos (numa proteína) determina necessariamente a sua estrutura tridimensional eram incompatíveis com a existência de uma proteína (um anticorpo) poder variar enormemente a sua conformação dependendo do antigénio que encontrava.

Portanto, o princípio que "it's all in the genes" obrigou a aceitar que anticorpos diferentes tinham sequências de amino-ácidos diferentes (isto foi provado experimentalmente com a maior das facilidades assim que tecnologias de sequenciação se tornaram correntes) e a observação do Landsteiner passou a ser interpretada como resultado de reactividade cruzada. Um anticorpo específico para "C - tripla ligação - O" também havia de reagir com outro qualquer antigénio e talvez esse antigénio desconhecido que tenha servido de força selectiva para conservar tão exdrúxula especificidade na espécie.

Sobrou o problema da diversidade propriamente dito... já não a questão de como explicar tantas especificidades tão diferentes (que era do tempo em que se pensava que bastava uma proteína, ou um número reduzido delas, para ter várias especificidades), mas sim a existência de tantos genes tão diferentes, cada um expresso pela sua célula B. Burnett acabou por propôr (e demonstrar) que cada célula B faz um anticorpo particular. Cada uma dessas células expressa um gene diferente dos das outras - o fantasma de Darwin ainda o assombrava certamente porque ele chamou a isto Selecção clonal. Ver a propósito deste assunto também a NOTA 1 no fim deste texto. O paradigma mudou totalmente e Clonal Selection passou a ser o que estava a dar...

Durante os anos 60 e grande parte dos anos 70 duas Teorias antagónicas acumularam dados. Os da Germ-line Theory insistiam que toda a diversidade era genética e hereditária enquanto que os adeptos da Somatic mutation Theory propunham que um número reduzido de genes (codificando os anticorpos) se diversificavam por mutação somática enquanto as células B (ou os precursores) proliferavam, gerando-se assim uma larga colecção de clones de células cada um dos quais composto por células com uma especificidade particular (ie: uma sequência particular de bases codificando uma sequência particular de amino-ácidos na molécula de anticorpo).

Tonegawa veio a mostrar que estavam todos mais ou menos errados: A enorme diversidade (pré-existente à introdução do antigénio) dos anticorpos resulta da combinação aleatória de múltiplos gene fragments que se "juntam" para formar um gene de anticorpo. Nas cadeias pesadas há 3 tipos: V (em número de cerca de 300), D (10) e J (4) ; nas cadeias leves há 2: V (300) e J (4). Tudo isto dá uma diversidade mínima de 10.000.000 de moléculas diferentes ((300 X 10 X 4) x (300 x 4)), que é ainda aumentada num factor superior a 10 por o mecanismo de junção dos gene fragments (V - D - J ou V - J) não ser muito exacto (a junção pode ocorrer em pontos diferentes) e permitir ainda a introdução de sequências aleatórias de nucleotidos (chamadas N sequences) nos pontos de junção).

Em suma: A diversidade não resulta de variação somática nem é completamente codificada no germ-line (as N-sequences são introduzidas aleatóriamente em cada célula B, de cada vez que uma se forma).

A Somatic Mutation Theory obteve o seu dia ao Sol, com a demonstração que, no decurso de uma resposta imunitária (ie: após a introdução de antigénio no sistema) um mecanismo especial (chamado de Hipermutação) altera aleatoriamente a sequência de nucleotidos no gene de um anticorpo específico para esse antigénio e permite a "selecção" de anticorpos mutantes com afinidade mais elevada para esse antigénio. É por tudo isto que uma resposta imunitária, se lhe derem tempo, se torna mais e mais específica para o antigénio que a desencadeia levando à produção de anticorpos com uma afinidade cada vez mais elevada (um fenómeno chamado: Maturação da Resposta Imunitária, que era também difícil de explicar nas Teorias Instrutivas).


Creio que este sumário toca em todos os pontos que quero revisitar no "próximo capítulo", quando tentar analisar a história da evolução destas (Theories of G.O.D.) à luz da minha leitura dos mecanismos propostos por Popper e por Kuhn para explicar o progresso das ideias científicas. Antes que alguém me critique pelos alguns erros e simplificações que estão aí em cima, quero explicar que sei que tive de saltar por cima de alguns detalhes... felizmente neste domínio do conhecimento já todos sabemos tudo e por isso também eu sei as simplificações de que tive de me socorrer...

Outra coisa: O mecanismo descrito é o que ocorre em ratinhos, e também em humanos, com algumas variantes. Tanto quanto sei este mecanismo vale também para outros roedores (ratos e coelhos). Quanto ao que se passa noutras espécies, vou-me guardar para depois, quando falar do problema da côr das penas dos cisnes...


Santiago
_______________________________________

NOTA 1 Vale a pena falar também de Niels Jerne que propôs uma Natural-Selection Theory of Antibody Formation (com hífen e tudo). A obsessão com Darwin era tanta que Jerne acaba a postular um mecanismo que já nessa altura se sabia ser biologicamente absurdo: Ele sugere que os anticorpos se possam replicar ("autocatalytic replication of the specific globulin molecules") depois da sua síntese como proteínas, e após serem "seleccionados" pelo antigénio. Max Delbrück comunicou esse paper para o PNAS e Burnett mais tarde reconheceu que lhe serviu de inspiração para propôr a Teoria da Selecção Clonal surgida 2 anos depois...

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Princípios e Incertezas (parte II)

Agora sim, caro Santiago, o tal debate. Este post vai em resposta à seguinte frase:

"A estrutura do gene ou o mecanismo de geração de diversidade dos anticorpos, por exemplo, nunca mais serão explicados de outra forma porque hoje em dia os conhecemos molecularmente, em todo o detalhe. São dois exemplos de "fenómenos" cujo "paradigma" (à la Kuhn) nunca mais se alterará (em aparte esclareço que sou um opositor acérrimo da noção que toda a verdade científica é provisória e é sempre superseded por uma melhor explicação da realidade...)"

Começo por falar de Lord Kelvin, e da famosa alocução de 27 de Abril de 1900 “Nineteenth century clouds over the dynamical theory of heat and light”. Sendo Kelvin uma figura respeitabilíssima - excelente cientista, inventor prolífico, e empresário de sucesso - essa conferência é uma boa candidatura ao prémio do maior flop da História da Ciência (juízo de valor perfeitamente subjectivo, não-científico, pelo qual assumo inteira responsabilidade). Lord Kelvin descreveu na altura o Estado da Arte da Física como uma Ciência essencialmente terminada, definitiva. A mecânica de Newton explicava todos os fenómenos físicos conhecidos, e o trabalho dos físicos dos séculos seguinte seria apenas o de "acrescentar casas decimais à constantes já conhecidas". Apenas duas pequenas nuvens destoavam no lindíssimo azul do céu no quadro pintado por Kelvin, a Experiência de Michelson-Moreley e a Radiação
dos Corpos Negros
, mas Kelvin considerava que em breve esses problemas seriam resolvidos e em concordância com as leis de Newton. Numa coisa tinha razão, não demorou muito tempo até essas questões serem explicadas. Cinco anos mais tarde, no seu Annus Mirabilis Einstein publicou dois artigos em que apresenta explicações para as "nuvens" de Kelvin, e a partir daí se iniciam as duas áreas de estudo que revolucionaram completamente a Física e mandaram Newton às ortigas, a "Relatividade" e a "Mecânica Quântica".

Isto reporta-nos ao princípio da "Falsificabilidade" de Karl Popper (e não estou a falar de Karl Popper o duvidoso filósofo político liberal, mas de Karl Popper o excelente epistemologista, um caso de esquizofrenia filosófica, diria eu...). Segundo o princípio da "Falsificabilidade" uma tese nunca pode ser demonstrada definitivemente como verdadeira, pode apenas ser ou não refutada. Todas as teorias que são ainda vigentes são-no porque resistiram até à data a todos os testes empíricos sem serem refutadas, isso não prova que são verdadeiras porque existe sempre a possibilidade um teste futuro vir a conseguir essa refutação. A teoria de Popper surge por oposição ao raciocínio indutivo dos positivistas, segundo o qual um número de observações suficientes de um fenómeno permite concluir a certeza absoluta desse fenómeno. O exemplo sempre citado é o dos cisnes brancos, se observarmos um número suficiente de cisnes e forem todos brancos concluímos que TODOS os cisnes são brancos. Popper diz-nos que enquanto não virmos todos os cisnes não podemos ter a certeza absoluta de que todos são brancos. A estatística diz-nos que Popper tem razão, se observarmos um número elevado de cisnes o que podemos dizer é que, com uma probabilidade de erro que é calculável, todos os cisnes são brancos. No entanto a probabilidade de erro existe sempre, a certeza nunca é absoluta.

Para além de puder ser refutada uma teoria científica também pode ser sempre melhorada, acrescentada, o que na essência continua coerente com a teoria de Popper (e contrário à citação do Santiago). O melhor exemplo disso de que me lembro é a teria da evolução de Darwin, com a Genética, e a Biologia Molecular o Darwinismo ganhou uma explicação mecanística que com próprio Darwin não foi possível. O que Darwin disse permanece válido mas a teoria da evolução entra numa nova dimensão, passou a chamar-se até neo-Darwinismo. Um exemplo de que qualquer teoria é apenas uma conjuntura temporária e que pode ser refutada ou melhorada.

Finalmente para o exemplo da estrutura do gene ou do anti-corpo, que são os exemplos que o Santiago dá. São de facto exemplos de fenómenos que conhecemos com o enorme detalhe molecular, isso não é contestável, e não foram ainda refutados (nem parece que venham a ser em breve). Os modelos explicam todas as observações conhecidas portanto estamos perante teorias muito sólidas, mas continuo a pensar que convém não ceder à visão positivista. Por exemplo, é bom lembrar que estas descobertas foram feitas em organismos-modelo, que são as espécies que se estudam em laboratório. Ora, estas são uma meia-dúzia, em contraste com os milhões de espécies que constituem a biosfera. Estamos a extrapolar para todos os organismos vivos (no caso dos genes) ou para uma grande parte dos animais (no caso dos anti-corpos) conhecimentos que nos vêem de um pequeno número de espécies de laboratório. Se não estamos a extrapolar, então estamos apenas a dar uma descrição parcial do fenómeno que nos interessa. É possível que uma qualquer forma de vida que não conhecemos ou não estudámos venha a refutar os nossos modelos actuais. Já aconteceu com o código genético, algumas espécies de bactérias têm ligeiras diferenças em relação ao código genético dito "universal". São vistas como excepções bizarras que não alteram a visão global, mas do ponto de vista forma são uma refutação da tese de que o código genético e universal.

Numa coisa concordo com o Santiago, é aquele "sempre" a bold na frase que cito. Uma teoria científica não é sempre uma verdade provisória, algumas há que são definitivas, e outras que não. Mas para nosso azar não podemos distinguir umas e outras, não sabemos prever o futuro, e não sabemos quais vão ser refutadas e quais vão permanecer válidas.

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Viva a Républica!

Hoje, um dia quase tão importante como o 25 de Abril. É pena é o PREC de 1910-1926 não ter corrido lá muito bem...

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terça-feira, outubro 03, 2006

Princípios e Incertezas (parte I)

Nota prévia: Caro Santiago, este ainda não é bem o debate prometido, mas anda lá perto e vem na sequência dos outros que temos tido por aí.

Dei por mim a falar do Princípio da Incerteza de Heisenberg, num comentário no Conta Natura, o que me fez pensar nas implicações filosóficas desse Princípio. Isto depois de AAA numa outra caixa de comentários, e citado por Santiago neste outro post, ter dito que faltam aos cientistas as "mais básicas noções de Filosofia". Sou levado a concluir que, não tendo a Filosofia mudado substancialmente depois da descoberta de Heisenberg, (ao que se pode acrescentar a Teoria do Caos, ou a Termodinâmica), é exactamente o inverso do que afirma AAA que devemos lamentar. É a Filosofia que ignora olimpicamente a Ciência, e falha redondamente na compreensão das implicações das mais importantes descobertas científicas.

Segundo o princípio da incerteza de Heisenberg não é possível determinar simultaneamente a posição e a velocidade de um electrão. E isto não é por uma limitação técnica que possa ser ultrapassada com a melhoria da tecnologia, é uma impossibilidade física fundamental, é uma lei da física (pelo menos enquanto não for refutada, e já lá vão 80 anos). Acontece que, se acreditarmos numa noção absoluta de verdade, a verdade é que num dado momento um electrão tem uma posição e tem uma velocidade. Isto quer dizer que o alcance da verdade pelo espírito humano é fundamentalmente impossível, fisicamente impossível. Mas porque razão é impossível determinar simultaneamente a posição e velocidade do electrão? Porque a observação do electrão altera-lhe o estado. Quer isto dizer que, sendo o electrão um objecto exterior ao observador, este só o pode "ver" interagindo com ele nas suas abordagens experimentais, essa interacção vai fornecer ao electrão energia, e isso faz com que ou a posição, ou a velocidade do electrão, ou ambas, se alterem, portanto o objecto inicial, "puro" por assim dizer, desaparece com o desenrolar da experiência. Resumindo o observador altera a natureza do objecto.

Poderiam dizer que esta última frase é uma generalização abusiva, que o princípio da incerteza se aplica apenas ao electrão, mas não é o caso. O objecto, qualquer que ele seja, sendo exterior ao observador é-lhe sempre inacessível. A única coisa que é acessível é a interacção do observador com o objecto, e essa interacção altera o objecto, ou seja o verdadeiro objecto inicial que se pretendia estudar perde-se. Por exemplo uma fotografia na realidade é a interacção entre os fotões reflectidos pela paisagem e a prata que existe na película (pelo menos era assim antes do digital), e só através da revelação se pode ver a imagem, mas revelações podem ser feitas de muitas maneira, com resultados diferentes, nenhum deles rigorosamente verdadeiro. Outro exemplo em Ciência é a Biologia Celular, se pusermos uma célula ao microscópio ela é quase sempre absolutamente transparente. Só após técnicas que fixação, coloração e manipulação de luz pudemos ver a célula, ou seja só a célula alterada é visível ao observador.

Uma vez em conversa com uma antropóloga alemã, dizia-me ela que isto não era nada de novo, que em Ciências Sociais já se sabe há muito tempo que o observador não é nunca completamente imparcial, o tal bias, e que pode portanto deformar o objecto observado. Eu contrapus que não estávamos a falar do mesmo nível, que o caso que ela me apresentava podia, pelo menos em teoria, ser corrigido com rigor intelectual e com métodos de estudo apropriados, suficientemente críticos, mas que não representava uma prova da impossibilidade fundamental do observador estudar o objecto sem o alterar, como o faz o princípio da incerteza de Heisenberg. Ela não chegou a perceber a diferença entre um e outro.

Também a teoria do Caos demonstra que em fenómenos não lineares (que são quase todos os fenómenos da vida real, da Termodinâmica à Biologia de Populações, da Meteorologia à Economia) uma pequena variação nas condições iniciais, abaixo do grau de precisão dos nossos instrumentos de medida, leva a consequências completamente díspares. A previsão rigorosa de fenómenos não-lineares, mesmo conhecendo todas as variáveis do sistema (o que é raro), é impossível. E também podia falar de termodinâmica e Ilia Prigogine, mas não vale a pena...

A pergunta que me fica é: Como pode a Filosofia permanecer inalterada depois de se estabelecer a que a verdade é fundamentalmente inacessível ao espírito humano? Ou de uma forma mais prosaica: como é que alguém ainda pode levar a noção de verdade a sério?

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domingo, outubro 01, 2006

Sim, Chico Buarque é bom, mas...

...é branco! Branco, musicalmente falando, não me interpretem mal, e já explico o que quero dizer com isto. Acontece que nesta altura em que o Chico vai dar uns concertos em Lisboa, e que na blogosfera há tanto quem o aprecie (sei lá, o Filipe Moura, o Ivan Nunes, e, o guru dos admiradores do Chico na blogosfera, a Ana Sá Lopes) apetece-me quebrar o unanimismo, com um bocado de sorte gerar alguma polémica, e dizer que o Chico está bastante overrated, musicalmente falando. Lembra-me o Filipe e com razão que o unanimismo é pelo lado lírico, o que até se compreende, é um excelente poeta, e não é por aí que eu vou pegar, é pelo lado musical mesmo. E não é que eu não goste de Chico, até gosto, passei uns anos a ouvir um vinil de capa azul que os meus pais tinham, fui aos concertos no Campo Pequeno (aos anos a que isso foi, pr'aí em 87, era eu uma criança) e no Carlos Lopes, gostei muito e até era gozado no secundário por isso. Foi para mim uma excelente porta de entrada na música brasileira, depois veio Elis, a seguir todos os mestres da bossa nova, Vinícius, Caetano e o Tropicalismo e finalmente Gilberto Gil (não sei se repararam na progressão ascensional, ou quase...). Tudo isto acaba por relativizar um bocado a genialidade do Chico Buarque.
Mas então o que é isso de ser musicalmente branco? E que mal tem isso? Começando pela segunda pergunta, é uma questão de gosto pessoal, há quem veja nisso uma virtude e há quem não veja (e aqui eu levanto timidamente o braço, estou no segundo grupo). Quando digo musicalmente branco, por oposição a negro, estou a pensar naquilo que distingue a música europeia (branca) da música africana ou mestiça com influência africana (negra). A música europeia popular ou a dita erudita (pelo menos até Wagner, que depois de Schönberg é o desastre) é essencialmente a melodia com uma propensão irritante para a tonalidade. Já a música africana é feita de harmonias e ritmos, mesmo nas suas formas mais básicas a música negra é na sua essência muito mais complexa do que a branca, por mais que esta tente disfarçar com orquestrações elaboradas (só possíveis graças à simplicidade intrínseca da música europeia). Mais ainda, quando nas Américas se dá a miscigenação das músicas europeia e africana, com esses dois fenómenos gémeos do Jazz (norte-americano) e do Choro (brasileiro), precursores de uma infinidade de géneros num e noutro lado, complementam-se os ritmos e harmonias africanos com o formalismo canónico europeu e ganha a música em complexidade, que é uma forma de riqueza. Ora, com Chico essa riqueza desaparece. Com Chico a música é só melodia, e sempre perturbadoramente tonal, acabando por se aproximar muito mais de uma certa música europeia, nomeadamente a Chanson Française e a música ligeira (o que quer que isso seja), do que do Choro. Quando se tenta transcrever uma melodia buarquiana deparamo-nos com a (triste) constatação de que não há uma notazinha que seja fora da escala - claro que os apreciadores verão nisso um sinal de perfeição. Quando se transcreve Gil, nem se sabe em que escala se está, mas isso é um detalhe. A música de Chico é assim cristalina, perfeitinha, simples, direitinha, arranjadinha, mas é esse o problema, é demasiado arranjadinha, demasiado certinha. Mais branco que isso só mesmo Bach. O vídeo que se pode ver no link para A Praia ali em cima é um excelente exemplo do efeito Chico. Note-se que se trata de uma interpretação do Chico Buarque de um tema de Sivuca (João e Joana, a letra é de Chico). Pegando numa música de Sivuca, esse grande mestre do choro e outros géneros, Chico toca e canta, é só ele e o violão, assim sem mais nada. Onde está o pandeiro? E o resto? Onde foi parar toda a riqueza e complexidade da música mestiça?
É claro que é uma questão de gosto, há quem goste e quem não goste, mas gostos discutem-se (espero...).

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